Textos da Internet

5.10.08

 

Morreu Dinis Machado, autor do primeiro best-seller português depois do 25 de Abril

04.10.2008, Isabel Coutinho

Jornalista, escritor, editor, amante da BD e do policial e crítico de cinema, Dinis Machado teve em O Que Diz Molero a sua obra maior, considerada um tratado sobre o que é ser português

O escritor Dinis Machado e também jornalista, editor e crítico de ci-
nema morreu ontem, em Lisboa, aos 78 anos, de cancro do pulmão. "Adeus, Dinis. Até amanhã, entre fumo e histórias - as de futebol e andorinhas, as que nos enchiam de riso e as que havemos de contar ainda." Estas são as palavras de despedida que lhe dedica o escritor Francisco José Viegas, director da revista Ler e cultor do género policial e também seu amigo.
O funeral realiza-se hoje, às 16h, no Cemitério do Alto de São João e o corpo está desde ontem em câmara- -ardente na Igreja da Encarnação, ao Chiado, em Lisboa.
Dinis Machado começou a escrever aos 17 anos (passou por vários jor-
nais, entre os quais A Bola, o Diário Ilustrado e o Diário de Lisboa) e é o autor do famoso livro O Que Diz Molero, publicado pela Bertrand em 1977 e considerado o primeiro best-seller da ficção portuguesa depois do 25 de Abril. Actualmente com 31 edições, tem tido sucessivas reedições e está traduzido para várias línguas. "É um livro que não envelhece", nas palavras de Viegas; "uma lição de mestre", nas palavras do escritor e jornalista Rui Cardoso Martins. "Um dos livros fundamentais da literatura deste século", nas palavras da cronista Clara Ferreira Alves, mas também a opinião de Assis Pacheco, Cardoso Pires e Lobo Antunes. Com o pseudónimo de Dennis McShade inventou o assassino Peter Maynard, a personagem que aparece nos romances policiais que escreveu entre 1967 e 1968.

O choque de Piedade
Uma das primeiras pessoas a ler O Que Diz Molero foi Maria da Piedade Ferreira, actual editora da Oceanos e que o editou na altura na Bertrand. Quando leu o livro pensou: "Hei-de edi-
tar este livro, nem que seja despedida. A editora explicou ao PÚBLICO que o livro vendeu na altura "mais de 100 mil exemplares, o que era uma coisa inaudita, só Fernando Namora vendia isso, mas ao longo de muitos meses". A primeira crítica ao livro foi feita por Luiz Pacheco, e a partir daí foi uma bola de neve. "Descobri um autor", escreveu Pacheco na altura. Piedade conheceu Dinis Machado na editora Íbis, onde ele editava a revista Tintin e a Spirou e também livros policiais e de cowboys que ela traduzia. Depois a Bertrand comprou a Íbis e eles continuaram a trabalhar na mesma sala durante mais de dez anos.
Na última revista Ler, Maria da Piedade já contou que no início Dinis Machado não falava desse livro que andava a escrever (demorou dois anos), mas mais tarde quis saber a sua opinião. Quando o leu "foi um cho-
que", escreveu. "Um choque primeiro para mim, quando o li, e depois para o Dinis Machado, quando o sucesso lhe desabou em cima."
O Que Diz Molero foi reeditado em 2007, três décadas depois da sua edição original, por ocasião do 77.º aniversário do autor e foi adaptado ao teatro por José Pedro Gomes e António Feio.
Se há algo sempre presente nas declarações dos que o conheceram é que Dinis Machado era "uma exce-
lente pessoa". Rui Cardoso Martins disse à agência Lusa que nunca conheceu "uma pessoa com tanto talento e tão pouca vaidade". "Acho que era um caso único", frisou.

Filho do Bairro Alto
Nasceu a 21 de Março de 1930, em Lisboa, e cresceu no Bairro Alto, onde viveu até aos 34 anos.
O ministro da Cultura, José António Pinto Ribeiro, seu amigo, revelou à Lusa que era "um homem com uma sabedoria de vida extraordinária" e que "gostava muito da vida e dos prazeres da vida". "Um escritor que soube encarnar o que são as questões da vida, da vida de um bairro, da vida do Bairro Alto, da vida popular, de uma festa popular, da experiência, da aventura, de tudo aquilo, como um dia disse Luiz Pacheco, numa espécie de cavalgada furiosa de episódios, com uma extraordinária proximidade do que é a vida", acrescentou.
Talvez isto lhe viesse de seu pai, "um homem muito especial", dono do restaurante do Bairro Alto Farta--Brutos, e "uma curiosa figura lisboeta" que "queria que o filho fosse escritor, fosse tudo o que ele não ti-
nha sido", como já escreveu Clara Ferreira Alves. Era casado com Dulce Cabrita, economista, reformada da Universidade Técnica, intérprete lírica, de quem dizia lhe ter posto ordem na vida.
Escreveu Discurso de Alfredo Marceneiro a Gabriel García Marquez (1984, Bertrand), Reduto Quase Final (1989, Bertrand) e Gráfico de Vendas com Orquídea (1999, Cotovia). A Quetzal (que pertence ao mesmo grupo que a Bertrand) iniciará em breve a reedição da sua obra. Sob o pseudónimo Dennis McShade, escreveu também, entre 1967 e 1968, os romances policiais Mão Direita do Diabo, Requiem para D. Quixote e Mulher e Arma com Guitarra Espanhola que estão agora a ser reeditados pela Assírio & Alvim.
 

Humor na TV em Portugal, agora a sério

05.10.2008, Joana Amaral Cardoso

Zé Carlos chega esta noite, mas os Gato Fedorento duvidam se querem fazer mais televisão após o fim do contrato com a SIC. O humor na TV para além dos quatro felinos estende-se das Produções Fictícias a Vai Tudo Abaixo, passando pelo esclarecimento: a Liga dos Últimos não é um programa de humor

Voltaram os "parvos". Adoram desdramatizar, repetem que só dizem umas parvoíces. Se o discurso dos Gato Fedorento sobre o seu trabalho fosse uma nuvem de palavras (tag cloud) na Internet, parvo e parvoíce seriam algumas das palavras em maior destaque, a negrito autodepreciativo. É como se não quisessem ser levados a sério, mas eles são o caso mais sério de humor televisivo (e não só) dos últimos quatro anos em Portugal.
Zé Carlos é a estreia consensual dos Gato Fedorento na SIC generalista, depois de um incidente com o então director Manuel Fonseca que os levou a sair do canal de Carnaxide em 2005, e o pretexto para se discutir o humor que se faz na televisão portuguesa. Mas o que tem graça - para humoristas, críticos, académicos e espectadores - não é unânime. Tirando os Gato Fedorento.
"Herdeiros" de Herman José, diz Francisco Rui Cádima, professor de Ciências de Comunicação da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. "Humor inteligente, com graça e é audiovisual", diz o crítico de TV Eduardo Cintra Torres. "Novos, lavadinhos, bonitos e cultos", diz Herman José.
"Neste momento os Gato Fedorento são um fenómeno sociológico: compare-se a promoção dos Gato com a de qualquer outro comediante", sugere Nuno Artur Silva, responsável pelas Produções Fictícias, que agenciam e fazem a produção executiva dos Gato. "Neste momento, eles têm um estatuto de acontecimento. São um fenómeno social e não só um programa de televisão, e isso é excelente."
Bastava olhar em volta na última semana para perceber que eles vinham aí. Parava-se num semáforo no centro de Lisboa, eles estavam lá, no poste do próprio sinal de trânsito, sob o título "Procuram-se". E descritos como... "palermas". Na publicidade, da TV às revistas, também lá estavam. Na última segunda-feira à noite, na SIC, numa antecipação de Zé Carlos, que hoje vai para o ar às 22h20, lá andavam novamente.
Isto fora as promoções à venda do DVD de Diz Que É Uma Espécie de Magazine, as aparições na TV nos anúncios do operador Meo. Até a administração da Portugal Telecom, pela qual deram a cara, atribuiu ao "efeito Gato Fedorento" o primeiro lugar na lista das campanhas com maior reconhecimento de 2007.
A rentrée televisiva, como tem vindo a ser hábito nos últimos anos, esboroou-se e faz-se viver ao longo de semanas e meses. A chegada do colectivo formado por Ricardo Araújo Pereira, Miguel Góis, Tiago Dores e José Diogo Quintela à SIC é mais uma etapa dessa rentrée, talvez a última, e mais uma volta na vida televisiva dos humoristas - que se anuncia curta. Desta vez, vão fazer 26 programas de televisão - o contrato com a SIC dura até ao final de 2009. E Zé Carlos, o que será? Irá beber ao formato que criaram para a RTP, mas também ao que fizeram na SIC Radical?
"Depois do que aconteceu ao Zé Diogo no fim de ano [multado por excesso de álcool ao volante], o programa não vai beber nada", garante Ricardo Araújo Pereira ao P2. "A SIC encomendou-nos uma fantochada parecida com o Diz Que É Uma Espécie de Magazine e é isso que vamos fazer." Uma "fantochada", portanto. Será um programa colado à actualidade e os quatro felinos sátiros sabem que "é muito mais difícil ter uma ideia para abordar determinado tema da actualidade que seja razoavelmente diferente das ideias" que já tiveram. "Mas isso é sempre divertido."
Herman José, para quem escreviam no início da carreira, concorda com a escolha. "É um formato mais realista, porque permite fazer alguns minutos de conversa e de descompressão. Para mim, suicídio humorístico é fazer o que fizemos no Hora H, que são 50 minutos de ficção que ninguém aguenta - nem os espectadores nem quem faz. Vê-se isso com Os Contemporâneos, que estão a fazer um trabalho maravilhoso e que passa relativamente despercebido", opinou ao P2.
O primeiro Zé Carlos foi gravado ontem e terá "um momento que é herdeiro dos Tesourinhos Deprimentes da RTP, mas agora com o arquivo da SIC, que consegue ser tão deprimente quanto o da RTP", prossegue Ricardo Araújo Pereira. O tesouro que vai hoje para o ar "parece ter sido feito, há 15 anos, de propósito para o nosso programa, tendo em conta os nossos protagonistas, que são muito... parvos".
No final de Zé Carlos haverá música, "mas são bandas completamente desconhecidas, escolhidas por nós e que achamos que vão dar muito que falar", provoca o humorista. Armando Teixeira, dos Balla, é o colaborador musical residente para o genérico e não só, e o resto só se poderá ver mesmo na televisão. E depois, como já é natural, na Internet.
Sobreexposição
Depois de quatro anos de popularidade - e alguma intervenção política - crescente, não pensaram em novos formatos. Tiraram a sua licença sabática desde a saída da RTP, mantiveram-se na imprensa, na rádio e na publicidade enquanto a restante comunidade humorística continuava a lavrar terreno televisivo. Os Contemporâneos (RTP1), Fogo Posto (SIC Radical), Vip Manicure (SIC), Telerural (RTP1) nasceram ou deram o salto na sua ausência. Outros projectos, como Vai Tudo Abaixo (SIC Radical) ou o dúbio - já lá iremos - Liga dos Últimos (RTP1 e RTPN) reforçaram o estatuto de culto e ganharam espaço.
Entretanto, e num momento de diversidade de géneros, estilos e protagonistas de humor feito em Portugal na televisão, dos generalistas ao cabo da SIC, Ricardo Araújo Pereira anuncia: "Estou convencido de que a nossa carreira televisiva não dura muito mais. No final do contrato com a SIC tenho dúvidas que assinemos mais um contrato logo a seguir. A fazermos televisão depois disso, será uma coisa esporádica."
Os Gato Fedorento têm noção da exposição a que estão sujeitos e a que se sujeitaram. Em Abril, quando assinaram o contrato com a SIC, Miguel Góis explicava que a sua duração era a ideal para "manter uma frescura criativa". E esta semana Ricardo Araújo Pereira, que se diz "um rústico" porque troca "uma gargalhada por 500 milhões de sorrisos", também reflectia sobre isso. São argumentistas e criativos, não estrelas de TV. "Achamos que a nossa vida não é isto. Essa é a razão principal. Não somos pessoas da televisão. Isto de aparecer foi sempre um acidente, teve o seu tempo e terá a altura em que vai acabar."
De 2004 para cá, de repente estão em todo o lado. "Foi uma experiência mais traumática do que outra coisa", o mediatismo súbito. "E isso só se suporta tendo um grupo inabalável. É fundamental que tenhamos sido amigos antes do que nos aconteceu", diz o humorista sobre o grupo.
Quem muito sabe acerca de sobreexposição é Herman José. Passaram 25 anos sobre a estreia de O Tal Canal, cujo aniversário vai ser assinalado com a edição em DVD (pela Castello Lopes) do programa de Marilu e Nelito. Inaugurou-se ali qualquer coisa. E será que já mudámos de Tal Canal?
Os bonecos, os "cromos" de Herman, vingavam numa época de monoteísmo televisivo - ou se rezava à RTP ou se professava o ascetismo, longe do ecrã. O seu nome era Tony Silva. Ou a cambada alinhava com Estebes, ou a paprika caía no melhor Cozinho para o Povo. "O Tal Canal, que foi uma forte charge à TV da época, assim como a 'novela' Moita Carrasco (Nicolau Breyner), que arrasava o pior da novela brasileira, foram dois momentos ímpares na televisão portuguesa", contextualiza Francisco Rui Cádima. "O contexto e o modo como surgiram criaram imediatas orfandades. Nada podia ser como dantes."
Andar em círculo
Mas o modelo aí nascido já não era original. "Somos todos filhos dos Monty Python", diz Herman José. "A partir daí, acabamos todos por andar em círculos. Todas as anedotas são parecidas, mudam os alentejanos para belgas ou para esquimós." As referências do humor português são sobretudo as anglo-saxónicas, de Benny Hill aos Python, até aos mais recentes mockumentaries (ficção filmada criando a ilusão de que se trata da realidade) de Ricky Gervais e Stephen Merchant - O Escritório, Extras. O outro ramo da árvore genealógica é a tradição portuguesa das anedotas, desde Bocage, dos Parodiantes radiofónicos, do cinema de Vasco Santana e António Silva e do teatro de revista, de que Os Malucos do Riso e Parabéns Camilo (SIC) serão descendentes. E do Brasil de Jô Soares e das novelas, por que não?
Herman não acredita na reinvenção da roda cómica, nem na novidade no humor a não ser na "frescura da pele" de quem o escreve ou interpreta. E confessa que consegue encontrar paralelos até para o trabalho de Jel, aliás Nuno Duarte, aliás Homem da Luta, "nos anos 1920, 30, 40, 50, 60, 70. É novo para as (novas) gerações. As próprias gerações se encarregam de descobrir as coisas pela primeira vez."
Nos últimos tempos, Jel declara que Vai Tudo Abaixo e agora anda pelos EUA a "fazer a luta" na campanha para as presidenciais. O seu humor é (SIC) Radical e autodescrito como punk rock comedy. "A nossa inspiração é a realidade e o Vai Tudo Abaixo é essencialmente um programa anarco-comodista", diz ao P2 por e-mail. Agrada a Eduardo Cintra Torres - "é anarquista, não respeita nada nem ninguém e isso é extremamente salutar no país do respeitinho" - e a Francisco Rui Cádima: "É pena que não trabalhe no âmbito da TV generalista; devia ser presença habitual nos telejornais portugueses... Aquela entrada de megafone no estúdio do Jornal das 9 do Mário Crespo tem quase todos os dias cabimento na nossa burocratizada informação televisiva."
A anarquia da Luta não agrada tanto a Nuno Artur Silva, que, reconhecendo que a sua tradição reality é próxima do que fez Sacha Baron Cohen com Borat (referência que Jel assume em relação a algumas personagens), não lhe acha graça e o descreve como "relativamente conformista", "um falso provocador", embora saúde a sua existência. Esta coisa do "ter graça" não é um lugar estável.
Piada política
Se há coisa que algum humor português tem feito na televisão nos últimos anos é provocar. Sobretudo os políticos e as suas decisões. Quer os Homens da Luta na Universidade Independente, quer a caricatura de Marcelo Rebelo de Sousa e o cartaz pró-imigração dos Gato Fedorento, passando pela escolha de Buraka Obama como solução de Os Contemporâneos para a liderança do PSD, até à Guarda Ambiental Republicana de Fogo Posto. E claro, o Contra-Informação, que agora tem novo reforço: António Posta, edil lisboeta de borracha.
Francisco Rui Cádima recorda que "muitas vezes a 'oposição política' em Portugal passa mais por um sketch humorístico do que por uma prelecção político-televisiva do líder A, B ou C" e diagnostica a falta que o Herman José autor dos anos 1980 faz. No espaço por ele deixado emergiram outros nomes. "Os Gato são fortes na sátira e na crítica política e o Diz Que É Uma Espécie de Magazine acabou por encontrar aí um dos seus mais fortes filões e daí, em boa parte, o sucesso desta série."
Em que terrenos se movem os Gato? Cintra Torres diz que é "dentro do respeitinho". E lá voltam os totós inofensivos que são os (bons) gigantes do humor nacional. "É muito curioso como eles conseguem, ao mesmo tempo, fazer o humor mais brutal com as figuras do poder político, ou da Igreja, ou do Exército, e fazer o discurso dos coitadinhos. Isto faz parte do país do respeitinho. Mas é muito interessante que façam e tenham coragem para fazer os sketches que têm feito."
Uma boa piada - receita indefinida. Ricardo Araújo Pereira atribui à surpresa um papel essencial no resultado do humor. À mistura, Herman José junta "informação, alguma cultura e um forte instinto autocrítico". Mas a graça tem morada incerta. Há quem jure que ela está em Gaia com a Filbox, que produz Telerural, por exemplo, e há quem vá sempre bater à porta da Travessa da Fábrica dos Pentes, em Lisboa, onde vivem as Produções Fictícias (PF).
Numa crónica de Agosto no P2, Eduardo Cintra Torres chamou às PF a "ASAE do humor televisivo", com uma cultura própria que ocupa "bastante o pouco espaço que há para este tipo de televisão". Dos oito programas de humor em exibição (a TVI não tem títulos do género no ar), as PF têm dedo de autoria em dois - Contra-Informação e Os Contemporâneos - e associação indirecta com um, Zé Carlos. Mas são amigas ou parentes afastadas de outros tantos.
É que na era moderna (e pós-moderna, talvez) da televisão em Portugal, no princípio era o Herman e Nuno Artur Silva junto dele. "A empresa começa por causa de mim. Cansei-me de escrever e tive a felicidade de encontrar o Nuno Artur, que tinha a mesma noção anglo-saxónica que eu", recorda Herman José.
A escola Produções Fictícias existe, os factos não permitem argumentos. Da empresa e rede de argumentistas e criativos saíram ou por ela passaram muitos dos humoristas e escritores de humor no activo. Com 15 anos de actividade, "são a universidade do humor em Portugal", define Cádima.
Nuno Artur Silva puxa do álbum de recordações: "Lembro-me de escolher a Maria Rueff num casting, com a Ana Bola ao meu lado. Lembro-me de escolher o Nuno Lopes para o Programa da Maria. Os primeiros textos que a dupla António Feio e José Pedro Gomes fez para TV eram meus. A equipa do Contra-Informação começou comigo, com o Rui Cardoso Martins e José de Pina."
As PF não abdicam do seu lugar na história do humor na televisão, mas rejeitam a ideia de monopólio ou controlo, porque esse cabe aos programadores dos canais. E se Nuno Artur Silva considera que o humor neste momento é a alternativa, em termos de criação ficcional portuguesa para televisão, à telenovela, por ser também mais barata de fazer, Nuno Duarte/Jel, que descreve as PF como "uma cooperativa de humoristas", acha que os meios não ditam a qualidade e identifica um "mercado muito competitivo onde as cooperativas ainda açambarcam".
Humor sem humoristas
O mercado está, então, competitivo. Se medíssemos os sinais vitais do humor televisivo em Portugal, dificilmente seria precisa uma reanimação. "Acho que está em grande forma e os meus programas favoritos são sem dúvida os telejornais", exclama Jel.
Ricardo Araújo Pereira confessa ter pouco tempo para ver televisão. "O Nicolau Breyner tem uma frase espectacular sobre se vê os seus programas: 'Eu para fazer é um preço, para ver é mais caro.' Mas o que posso sublinhar, mesmo vendo muito pouca televisão, é o facto agradável de haver muita variedade, muitos tipos de humor."
E há caras novas. Pedro Alves e João Paulo Rodrigues de Telerural, Gonçalo Waddington ou Carla Vasconcelos, até os Gato, Eduardo Madeira, Bruno Nogueira, Filipe Homem Fonseca, Manuel Marques, Nuno Lopes, Jel, mais os Alcómicos Anónimos, tudo depois de duas décadas de parcas alternativas à "família Herman". "Simultaneamente também temos o Camilo e os Malucos. Óptimo. Há uma vitalidade e uma diversidade no ar que é saudável e que espero que se desenvolva, nomeadamente pelo lado do talk-show político e do humor mais instalado em ficções - sitcoms. Mas se há um género português em que se vê material português original no ar é o humor", remata Nuno Artur Silva.
No ar, além das novidades do ano, há então os cromos repetidos, como Malucos do Riso e Parabéns Camilo (SIC). Os resistentes - Contra-Informação (RTP1). Os fora do baralho - Vai Tudo Abaixo. Os mais ou menos recentemente desaparecidos como Fogo Posto, Programa da Maria, Hora H, Prédio do Vasco, Batanetes, Paraíso Filmes, entre outros. E os híbridos, alguns em exibição, outros já nos arquivos: Eixo do Mal, Prazer dos Diabos, Ainda Bem Que Apareceste, Herman SIC, Perfeito Anormal, Cabaret da Coxa e o caso Liga dos Últimos.
O programa nascido na NTV e que transitou em 2004 para a RTPN é um fenómeno em si. Já vai na quinta temporada e é um caso de sucesso, especialmente massificado desde que partilha a noite de humor na RTP1 com Telerural, e de polémica. O retrato do mundo do futebol amador ou das divisões mais recuadas é também um espelho de um Portugal em que os domingos à tarde se passam em comunidade.
"Há um certo fim do futebol e fim deste pequeno país, dos clubes pequeninos, da lógica da associação recreativa local", descreve Daniel Deusdado, da produtora Farol de Ideias e autor do programa. Às vezes com tinto ou cerveja a mais, com fanatismo em grandes doses. E riso. É uma espécie de programa de humor involuntário.
"A Liga dos Últimos é muito interessante porque é o primeiro exemplo do humor português que dispensa os humoristas, é uma espécie de ângulo sobre a realidade para ver o lado cómico sem quase haver uma intervenção do humorista", elabora Nuno Artur Silva, que acaba por constatar que "não é um programa de humor", mas é, ainda assim, pioneiro. Daniel Deusdado garante que o objectivo não é procurar "situações caricatas", mas que "o país real às vezes faz-nos chorar e às vezes faz-nos rir".
A Liga faz-se de reportagem, por jornalistas devidamente encartados, e com cuidados, diz Deusdado, para encontrar o "equilíbrio entre o que é televisivamente expressivo sem que as coisas ultrapassem determinadas marcas", sendo excluídas as imagens em que claramente a câmara ofusca e ou provoca a pura exibição dos visados ou a "apropriação da sua alma". Na blogosfera, Francisco Rui Cádima tinha já criticado a Liga dos Últimos e reiterou ao P2 que considera o programa "um caso demencial" que se mantém no serviço público de televisão "porque em Portugal a indignação face ao obsceno é coisa rara".
Com centenas de milhares de visualizações no YouTube, é uma fonte de risota perante um país que pode ser identificado com o isolamento rural e cultural. Mas Daniel Deusdado recorda reportagens nos arredores do Porto e até na Pontinha, "a dois quilómetros do Estádio da Luz, e cujo cenário é uma coisa do outro mundo". "Quando começamos a ver o mundo tão filtrado achamos que as pessoas são assim e são ridículas, mas é o nosso olhar que nos leva a pensar isso."
Rir de quê?
No fim de um texto com muito pouca graça, duas perguntas para o humor português.
Se se começa pelos Gato, volte-se a eles para tentar saber o segredo do seu sucesso. "Uma das razões do êxito dos Gatos é que eles controlam o processo do princípio ao fim", atira Nuno Artur Silva, corroborado por Ricardo Araújo Pereira. "Criam personagens, invertem a realidade, mostram o absurdo da realidade tornando-a absurda. E têm graça", o que é do foro do "inexplicável", diz Cintra Torres. "Fizeram omeletas sem ovos, sem pratos, sem restaurante na SIC Radical. E depois conseguiram transpor essa dinâmica para um canal generalista, já com dinheiro", resume Herman. E "são fortes na sátira e na crítica política", destaca Cádima.
E de que se riem os portugueses frente à televisão? Olhando para o que saiu da TV made in Portugal para a rua nos últimos anos, é mais ou menos disto: do Buraka Obama dos Contemporâneos, do Paulo "com tranquilidade" Bento, da Amy Rueff Winehouse, de Araújo Pereira Sócrates, dos saloios do Curral de Moinas que vão ficar sem centro de saúde, do Nelo enclausurado no armário, do piscar de olho ritualizado dos Malucos do Riso, do Granda Nóia, do Zé Manel Taxista, das corridas suicidas dos reformados a atravessar a Rua Morais Soares, das manicures coscuvilheiras, do Capitão Moura e do ki-ki-ki kiriki-kiki dos Homens da Luta. Ou seja, sobretudo de si próprios.

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