12.05.2008
Autocarros de volta a Portugal cheios de medo. Para os emigrantes portugueses que viviam nos bairros de lata franceses, Maio de 68 não foi uma festa. É uma história pouco conhecida, mas há quem teime em contá-la. Por Kathleen Gomes, em Paris
Não é uma história feliz, mas alguém tinha de a contar.
Nos debates que normalmente sucedem os filmes de José Vieira, dizem-lhe muitas vezes: "Você agora devia fazer filmes sobre os portugueses que tiveram sucesso."
Como se pedissem um antídoto.
José Vieira costuma responder com uma tirada à Tolstoi. "As pessoas felizes não têm história."
A propósito do Maio de 68, há uma história que já foi contada - a dos exilados portugueses em Paris que participaram ou assistiram aos acontecimentos da primeira fila - e uma história que faltava contar - a dos milhares de emigrantes portugueses que tiveram medo.
José Vieira, 50 anos, um luso-descendente, como se costuma dizer, acaba de fazer um filme sobre isso. Chama-se Le drôle de mai e vai ser um problema traduzir para português porque este drôle tanto significa engraçado como bizarro. Nele percebe-se como o Maio de 68 não foi só celebração mas temor.
Em 68 há 300 mil emigrantes portugueses em França. Maio era uma revolta de tendência esquerdista e eles tinham aprendido a desconfiar dos comunistas. A greve geral e paralisia do país ameaçavam boicotar a sua vinda para França - receavam perder o trabalho ou ser reenviados para Portugal. Era uma comunidade que mal falava francês, muitas vezes analfabeta e com poucos anos de França (a vaga começa em 1963).
"Naquela altura, a gente sabia lá o que era uma greve geral", diz um ex-emigrante no documentário de José Vieira. O pai do realizador, 16 anos de França, também dá o seu testemunho: "Os portugueses não eram muito a favor da greve, eram mais agarrados ao trabalho. Acho que perdi dois dias [de trabalho], só. Algumas pessoas vieram passar uns tempos a Portugal até que aquilo passasse."
José Vieira remontou Le drôle de mai porque, na primeira versão, "as pessoas estavam sempre a falar do medo, do medo". O medo "estava inscrito nas pessoas" e isso tinha menos a ver com o imprevisível Maio francês do que com hábitos trazidos de casa. Como diz ao P2 Jorge Valadas, um português que chegou a Paris em 1967 e que se assume como revolucionário ("Considerei-me revolucionário durante muitos anos e ainda me considero, embora ache que a palavra tem hoje um sentido difícil de definir"), "o salazarismo era uma máquina de repressão que não se pode reduzir às histórias da PIDE, da polícia, dos presos. Não, era muito pior do que isso". "Eu era um puto de 20 anos, mas tinha uma carga de revolta social, relacional, afectiva, sexual, tudo, extremamente forte."
Bairros de lama
Le drôle de mai tem um subtítulo: Crónica dos anos de lama. É uma história que podia continuar blindada pelo silêncio, porque não enaltece ninguém: nem Portugal, nem França, nem os seus protagonistas. Em 68 havia uma centena de bairros de lata na região parisiense, os chamados bidonvilles. Uma parte dos portugueses que chegavam a França à época iam directamente da Gare d"Austerlitz para os bidonvilles. Isso faz parte da história dele, José Vieira, que cresceu no bidonville de Massy, no Sul de Paris.
Um habitat precário e lamacento que se propagava ilegalmente em baldios e terrenos abandonados à beira de edifícios e torres modernos: um formigueiro com vista para a cidade que edificara. Barracas onde se vivia à míngua, com água a brotar do solo húmido. Por causa da lama, conta José Vieira, "as pessoas tinham dois pares de sapatos - um para andar no bairro, outro para sair".
"Eu não me vim embora por vergonha", admite um ex-emigrante no filme de Vieira. E assim Malcata (aldeia dos pais de José Vieira, na fronteira) foi perdendo os seus filhos para os bidonvilles franceses - porque nunca ninguém voltava para contar como realmente se vivia lá.
Carlos Saboga, argumentista que tem escrito para António-Pedro Vasconcelos (O Lugar do Morto, Jaime), Fernando Lopes (Matar Saudades) ou Mário Barroso (O Milagre segundo Salomé), era um português em Paris nessa altura (até hoje), alguém que vivendo noutra realidade, a dos exilados políticos, viu de perto os bidonvilles por razões profissionais (participou na pesquisa para o filme O Salto, de Christian de Chalonge, sobre a emigração clandestina portuguesa). "Paris estava cercada de bidonvilles onde estavam os tipos que estavam a fazer a França. Estes tipos estavam escondidos, não se viam nas ruas. Trabalhavam na Renault, na Citroën, na construção civil, nas auto-estradas. Eu conhecia os bairros de lata lisboetas - Casal Ventoso, Vale Escuro -, porque enquanto militantes [comunistas] íamos lá falar com as pessoas, mas nunca tinha visto nada assim. As condições de vida eram pavorosas. Quando os franceses falam dos 30 anos de prosperidade a seguir à guerra, esquecem-se dessa outra face da moeda."
O susto de Maio
Jorge Valadas, 62 anos, chegou a Paris depois de desertar da Marinha - um rebelde com causa mas que, como ele próprio diz, "não conhecia absolutamente nada de política". É em Paris que lê o Manifesto do Partido Comunista aos 20 anos e firma a sua formação e actividade políticas, nomeadamente escrevendo na revista portuguesa Cadernos de Circunstância, "feita por uma dezena de pessoas à esquerda do Partido Comunista e que estavam à procura de uma via", entre as quais se contava o sociólogo Manuel Villaverde Cabral. É aí que Maio de 68 o apanha. "Nunca direi que fiz isto e aquilo em Maio de 68. Andei empurrado pelo que se fazia, ia-se atrás do que acontecia. São períodos sociais em que as pessoas evoluem e mudam em dias como hoje em anos."
Jorge Valadas integrava os chamados comités ouvriers-étudiants que eclodiram em Maio de 68 (comités trabalhadores-estudantes, tentativas de fusão entre os estudantes e a classe operária, à revelia dos sindicatos de tendência comunista) e foi contactado para traduzir os panfletos e ir distribuí-los ao bidonville, já que falava português. "De maneira que lá fomos nós, às tantas da manhã, distribuir o papel, explicar o que se estava a passar, que tinha de haver solidariedade e eles tinham de aderir à greve, que isto era para mudar o mundo para toda a gente. Nem sei para que bidonville fomos, acho que foi o de Nanterre. E aquilo era um bunker, nem sequer pudemos entrar lá. Ninguém nos queria receber, um medo absoluto. E - isto é o lado caricato nesta história - a única pessoa que nos recebeu, que nos fez entrar na barraca dele, era um proletário português do Partido Comunista. O gajo estava completamente isolado naquele bidonville."
O jornal Le Monde noticia em Junho de 68 que dez mil portugueses tinham voltado para Portugal na sequência da revolta de Maio. José Vieira tinha dez anos à época. "Só me lembro de os vizinhos terem ido embora. Belmiro, o homem que fazia o transporte dos emigrantes portugueses, passou o mês todo a fazer viagens entre a Malcata e os bairros de lata."
A par disso, organizações pró-salazaristas em França trataram de reconduzir portugueses para o país, talvez por receio de um contágio comunista. Missões católicas, consulado, Association des Portugais en France. "Todos os dias saíam autocarros da Bastilha para Portugal", diz Vieira. Contava-se todo o tipo de histórias para assustar os emigrantes. "No fim de Julho fui para Itália, porque se dizia que a polícia francesa estava a entregar portugueses sem papéis à PIDE. Corriam esses boatos, que depois eram falsos. Mas não há jornais, não há notícias verificáveis", lembra Carlos Saboga. Esteve na linha da frente da revolta de Maio, a erigir barricadas na rue Gay-Lussac e ocupou a Casa de Portugal, residência oficial dos universitários portugueses em França. Para ele, Maio de 68 foi "umas férias grandes". Nada a ver com a experiência dos emigrantes portugueses nos bidonvilles. "Nem parece que vinham do mesmo país", resume José Vieira. Ele tem feito da emigração portuguesa, sob todas as suas formas (clandestina, exílio político, regresso e confronto com uma pátria idealizada), o programa da sua actividade enquanto realizador. Porque também é a história dele, como se viu (apesar ter feito a sua vida quase sempre em França, diz sentir-se "totalmente um emigrante", não se naturalizou, tem um BI português e um cartão de residência permanente), porque havia "uma história enorme a contar e praticamente ninguém estava a fazê-lo".
"Há uma segunda geração", nota Jorge Valadas, "de filhos de emigrantes, que têm uma necessidade muito forte de aceder à história dos pais deles. Porque um dos aspectos da emigração portuguesa é essa amnésia social. E a miséria reforçou muito isso. Vens de Vila Real ou Freixo de Espada à Cinta, morrias de fome com toda a tua família, chegas aqui e trabalhas como um cão... voltas para Portugal e não queres falar disso. Essa amnésia durou o tempo de uma geração. E agora aparecem os filhos desses emigrantes, a perguntar: mas qual é a história dos meus pais? O que é que se passou? Porque é que nunca me contaram nada? Há uma exigência de conhecer uma sociedade que lhes foi ocultada ou apresentada de maneira mítica."
Não é uma história feliz, mas alguém tem de a contar.
"E a história dos bairros de lata cabo-verdianos em Lisboa? E os mini-bidonvilles de ucranianos e moldavos no Algarve?", pergunta Jorge Valadas. "O facto de não se falar de uma [emigração portuguesa] também permite que a outra exista."