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7.1.08

 

A vida solta

A vida solta

07.01.2008

Já era livre muito antes da liberdade do 25 de Abril. Foi livre na cama-jangada de Comunidade, onde chegaram a ser cinco corpos enroscados. Luiz Pacheco respirava com todos esses pulmões. Foi o primeiro escritor da sua própria vida e o primeiro editor de muitos grandes. O P2 falou com figuras que se atravessaram no seu percurso. Nas páginas seguintes, textos de Vítor Silva Tavares e Rui Zink. Por Alexandra Lucas Coelho

Só uma "amiga à séria" dirá de Luiz Pacheco o que diz a actriz Lia Gama: "Mas ele na realidade já estava morto. Não podia escrever, não podia ler. Que vá com os anjos."
Luiz José Machado Gomes Guerreiro Pacheco, primeiro editor de grandes autores portugueses e primeiro escritor da sua própria vida, morreu no sábado à noite, aos 82 anos, entre a casa de um filho e o Hospital do Montijo.
Segundo a família, a morte aconteceu na sequência de um estado de debilitação geral. No último ano, Luiz Pacheco vivera no Montijo, primeiro em casa desse seu filho, João Miguel, depois num lar, e nos últimos dias de novo em casa do filho.
O corpo fica em câmara ardente na Basílica da Estrela a partir das 18h de hoje, e amanhã, após uma missa - a pedido de uma filha -, segue, às 18h45, para o Cemitério do Alto de São João, onde será cremado.
Era asmático desde criança - chegou a dizer numa entrevista que pensara não passar dos 21 anos -, e foi internado mais do que uma vez para curas de desintoxicação alcoólica. Mas, diz Lia Gama, pareceu sempre ter "muita saúde". Lisboeta da Estefânia, Luiz Pacheco nasceu a 7 de Maio de 1925 numa família sem grandes meios. Nas suas palavras, o pai era "um teso", um funcionário público que devia às criadas e à mercearia. Pacheco, futuro libertino, contou várias vezes que se estreou sexualmente "com uma puta de vinte escudos" da Mouraria que ao mesmo tempo comia uma maçã. Antes terá sido molestado sexualmente por um homem. Aos 18 anos dormia com uma rapariga de 14, o que lhe valeu acusação de estupro e resultou em casamento (veio a ter três filhos da primeira mulher, dois de uma segunda, três de uma terceira).
Passou pela Faculdade de Letras, Filogia Românica, onde terá sido bom aluno, antes de desistir. Empregou-se como agente fiscal da Inspecção Geral de Espectáculos, mas por pouco tempo. Começou a escrever em jornais e revistas, da Seara Nova ao Diário Popular, e em 1950 fundou a editora Contraponto, onde publicou, apesar da censura, aquilo de que gostava e em que acreditou, em muitos casos como um visionário. O Amor em Visita de Herberto Helder", como O Manual de Prestidigitação, A Pena Capital ou Discurso sobre a Reabilitação do Real Quotidiano, de Mário Cesariny. Ou Natália Correia, Raul Leal, António Maria Lisboa e vários outros surrealistas. João Gaspar Simões chamou-lhe "sacristão do surrealismo". Ele preferia dizer-se "neo-abjeccionista".
Anarca de natureza e comportamento, fez-se militante do PCP, de falar em querer bandeira no caixão e ter quotas em dias. "Eu já era muito livre antes da liberdade do 25 de Abril", disse uma vez.
Já depois dos 70, andava com um frasquinho de comprimidos de nitroglicerina no bolso. Se o suicídio o assaltasse, era só tomar.
Teve sempre tão pouco dinheiro que chegou a andar vestido de jornais debaixo da gabardine para aquecer. E calça curta a deixar ver tornozelos esqueléticos. Viveu de colaborações, dos livros que fazia, passou a ter um subsídio do Estado, por intermédio de António Alçada Baptista, e recebeu apoios de mecenas amigos, como Mário Soares.
"Volta e meia eu ia levar dinheiro ao Pacheco, quando ele tinha dificuldades, precisava de mudar de óculos ou outra coisa", conta José Manuel dos Santos, então assessor de Soares. "Tinha que ser em notas, porque ele não sabia ir a bancos."
Pacheco, diz, era não só um homem de uma cultura solidíssima como muito actualizado. "Essa face revela-se menos, porque ele fazia aquelas coisas provocatórias. Mas tanto tinha lido o Padre AntónioVieira como o Roland Barthes."
Tal como podia dizer mal de Mário Cesariny mas "tinha uma grande admiração por ele", apenas "achou que o Cesariny se tinha integrado excessivamente nas normas".
Uma das obras-primas de Luiz Pacheco, o conto Comunidade é dedicada a Cesariny, "poeta do corpo". E recentemente, no primeiro aniversário da morte do poeta, Pacheco e Cruzeiro Seixas reuniram-se para fazer uma edição especial desse livro, o da cama-jangada, ele, mulher e filhos ("Somos cinco numa cama. Para a cabeceira, eu, a rapariga, o bebé de dias; para os pés, o miúdo e a miúda mais pequena. Toco com o pé numa rosca de carne meiga e macia.")
"O Pacheco fazia e desfazia em relação aos outros e a si próprio", nota José Manuel dos Santos. "Não levava às últimas consequências a encenação do seu mito. Nas entrevistas desfazia tudo. Percebia que havia o perigo de assumir uma espécie de estátua de transgressor da literatura. Tinha esse sentido satírico em relação a si próprio. Era o seu impulso natural. Não fazia atitude."
Por exemplo, aponta, em O Libertino Passeia Por Braga, a Idolátrica, o Seu Esplendor, um dos textos mais conhecidos de Pacheco, "é o engatatão mas também engata um magala, até nisso há um desfazer da linha libertina de Sade e Casanova".
Aliás, em O Libertino... o que é que restava?, perguntava o próprio Pacheco. Uma masturbação. Era o fim. A sós ou acompanhado, como em O Teodolito - que Pacheco considerava o seu melhor texto - um livro que termina com Umbelina a "bater-lhe a punheta" "como se embalasse um filho" ou "desse o último aperto de mão, pela última vez se despedisse de um condenado".
A cama-jangada
A Luiz Pacheco, para Casanova e Sade faltaram-lhe títulos, farpelas - possivelmente, sobretudo, a natureza. Era um vagabundo chaplinesco arraçado de libertino, a celebrar o corpo chamando as coisas sempre pelos nomes, num primoroso português de quem leu muito e bem, com a desfaçatez de um fura-vidas.
Quis ser marinheiro mas nunca aprendeu a nadar, contava, rindo de si próprio, ou de nós, ou talvez não. Foi levar o então grande amigo José Cardoso Pires ao cais e ficou a ver navios.
O seu barco foi a cama-jangada, a da Comunidade ("A cama é larga, de madeira, alta, gingona, parece uma jangada. Eu comparo-a a uma jangada, onde vamos nós cinco, cercados de noite, de ventos, de ondas caprichosas, perigos desconhecidos. É uma imagem literária esta, a da cama-jangada: a literatura, a quem muito, sofregamente lê, dá isto: comparações para tudo, referências imprevistas, casos, tipos, situações paralelas que já houve ou foram inventadas, uma outra vida ou realidade como a nossa, de todos os dias e que se infiltra no sangue, ferve na memória sem que a gente dê por isso. Não ajuda a viver, é certo, porque nada ajuda a viver, antes a figurar-se. Permite, talvez, uma certa coerência [interior]. Não é importante, afinal - mas que será importante, afinal?").
Fez os seus livros e os dos outros. Editor, antes de escritor, se quis, em entrevistas.
Há assim vários Luizes no Luiz que deu à cultura portuguesa 82 anos soltos de convenção.
O alfarrabista Luís Gomes conheceu-o há uns 15 anos, através de Ricarte-Dácio de Sousa, um surrealista que se suicidou nos anos 90. "Ficámos muito próximos depois da morte do Dácio." Luiz Pacheco passava muito pela livraria e dele Luís Gomes guarda sobretudo o olhar, "apesar daquela grossura de lentes", isto num homem muito míope, para o fim quase cego, que nunca quis experimentar o laser por medo.
"Aquela libertinagem toda à volta do Luiz, ele no fundo não era bem assim, era um homem afável, tinha sentimentos. Fazendo os devidos descontos, não tendo que estar a fazer a sua personagem, não tendo uma audiência, o Luiz era um gentleman. Nessas conversas mostrava delicadeza. Um dos nossos temas era o Dácio. E ele falava dele com uma ternura e uma elevação que não se compadece com aquelas coisas que escrevia. Era um tipo doce."
Depois, há o Luiz escritor que "punha muito bem toda a sua vida em papel como nunca se fez em Portugal", o Luiz leitor com uma "cultura fantástica", e o Luiz editor "vastíssimo, que publicou tudo o que hoje são grandes autores e que na altura só ele percebeu".
Entrevistas em breve
Ainda este mês deverá sair na Tinta da China um volume com entrevistas de Luiz Pacheco organizado por João Pedro George, que também está a preparar uma biografia, para apresentar como tese de doutoramento. "É uma experiência de vida incomum, muito longe das convenções sociais. O maior biógrafo dele é ele. Aquilo que vivia era para escrever."
Entre o que viveu estão os seus amores com raparigas tão novas, como a sua primeira mulher de 14 anos, à luz de hoje, demasiado novas. Ontem, no site do Público, um leitor escrevia que "branquear a sua promoção da pedofilia é desonesto". João Pedro George ressalva que "algumas partes da sua vida hoje seriam passíveis de serem consideradas crime, mas tem que haver uma contextualização no tempo".
"As miúdas eram mais adultas do que eu, não havia pedofilia nenhuma", respondeu uma vez Luiz Pacheco numa entrevista, e repetiu o mesmo noutras.
Além disso, lembrava, "o libertino tem regras". Por exemplo, não se mete com a mulher do amigo.
Cândido Ferreira, que encenou Comunidade, conheceu-o nos anos 60, quando ele vivia numa cave na Estefânia. Conta que Pacheco nunca quis ver um ensaio da peça e nem foi à estreia. "Tinha medo. Mas apareceu no segundo dia e adorou. Depois foi várias vezes, levando amigos."
Anabela Almeia, que fez o guião de Mais um dia de noite, documentário sobre Luiz Pacheco, ontem reexibido na RTP, diz que ele nunca o quis ver, nem depois de concluído, quando ficaram próximos e ela lhe levava DVD, nas visitas. "Tinha medo de se emocionar."
Lia Gama, "companheira de muitas histórias que metem muita bebezana, muito tintol e bejecas", conheceu-o por carta, estando ela em Paris e sendo ele amigo de um amigo dela. "Escrevia-nos a pedir roupa e latas de conserva para as crianças da Comunidade". Os filhos.
Foi ela quem lhe levou cadernos de capa dura da Papelaria Emílio Braga. "Quando o Vítor Silva Tavares lhe editou o Libertino, eram 500 exemplares assinados pelo autor, e eu e o Vítor fomos com os caixotes ao Hospital de Santa Marta, onde ele estava por causa dos pulmões. Queixou-se que tinha dificuldade porque o papel dobrava-se nos joelhos quando tentava escrever. Então passei pela Emílio Braga e vi aquelas cadernos de contas encadernados e levei-lhe dois. Segundo ele, foi aí que começou a escrever os diários."
Estava Lia Gama a fazer As Lágrimas Amargas de Petra von Kant no Teatro da Graça e ele disse-lhe que a ia ver. Ela não acreditou. "Um dia cheguei e tinha lá um enorme ramo de cravos. Ele foi mesmo, mas chateou-se e saiu a meio."
Libertino ou libertário? "Libertino, libertário e anarca, mas sobretudo um homem de cultura, de inteligência, irreverência, contestário e que faz muita falta à cultura. Não se esqueçam que foi ele o primeiro editor do que não se podia editar naquelas anos 50 terríveis."
Lia Gama estranha a basílica e a missa. "Não tenho nenhum intreresse em ir ao funeral, porque nem ele nem eu gostávamos de folclore. A basílica, para ele é igual, mas eu acho que estaria melhor no Palácio Galveias. Mas vou à basílica dizer-lhe adeus."
Em Comunidade, Pacheco escreve: "Mas a minha força é grande. Respiro ao mesmo tempo por cinco pulmões: quatro corações jovens (certeiros e cheios) com muitos anos de corda para badalar, batem ao lado do meu e dão-lhe ânimo e companhia, eia! sus! avante! Para mais uma jornada." E a seguir: "Somos puros. Sabemos e cumprimos. Bem-aventurados somos e vós, também. Se sabeis estas coisas, bem-aventurados sereis, se as praticardes."
E em Teodolito: "Escrevo como um profissional, à linha, as palavras pouco importam, são ambíguas e inúteis. As palavras não somos nós. E tu, leitor, és um pretexto: testemunha, confidente, cúmplice, vítima ou juiz, jamais nos conheceremos, jamais saberás quem sou, onde te minto, onde chorei, onde nos podíamos ambos rir a bom rir da nossa pavorosa condição de gente morta ou gente que vai morrer."
Aquele ponto em que a vida se solta da morte.

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