Augusto M. Seabra
Por voltas de Fevereiro dei-me conta da "época dos prémios", dos "prémios da crítica" claro. Assim, a Associação Portuguesa de Críticos de Teatro distinguiu os encenadores Luís Miguel Cintra e Ricardo Pais, respectivamente por "Um Homem é um Homem" e "Ubus", e a AICA, a Associação Internacional de Crítica de Artes, a secção portuguesa da dita, o pintor Pedro Calapez e os arquitectos Francisco e Manuel Aires Mateus. São dois exemplos interessantes, por variadas razões.
Nem há só prémios literários, como os discursos críticos não se reduzem nem têm como horizonte necessário a crítica literária, pese ainda o logocentrismo muito patenteado por alguns críticos literários. Mas a circunstância associativa dos exemplos referidos supõe também um horizonte institucional. Pelas regras próprias do campo das artes visuais, há incidências de "valores críticos" nas lógicas próprias de programações institucionais e de mercado. Mas, nos outros campos?
Confesso que, tendo como pressuposto que uma apreciação crítica supõe escolhas e que portanto "a crítica" é plural e até eminentemente conflitual, sempre tive alguma dificuldade em entender o que seja um "prémio da crítica". Sucedendo que eles existem, a que correspondem, e como se posiciona a dita instituição associativa?
No caso, tive mesmo curiosidade de saber mais notícias da actividade da Associação de Críticos de Teatro, para além daquela, assinalável, que chega pela regular edição da revista "Sinais de Cena". Consultei o site, http://www.apcteatro.org/ - a derradeira notícia que lá constava, e que de resto continua, é a da ano anterior, ou seja, da entrega dos prémios referentes a 2004. Mas então, para além da publicação da revista, relevante insisto, mas que podia caber no âmbito de coordenadas de centros de estudos teatrais universitários, a única outra actividade da APCT é a entrega anual de prémios? Nada mais há na actualidade teatral que suscite os críticos associados?
Ainda assim, há um esboço de rede associativa. É que há também uma questão que ao fim de muito tempo acho que chegou o momento de invocar: a inexistência profissional de actividade crítica. Nada me importo, antes pelo contrário, de ser tido como "diletante" - entendo-o rigorosamente no sentido de "amor à arte". Mas no que me toca, isso foi também uma opção profissional - numa profissão que em Portugal não existe, nem no código das finanças, enquanto noutros países é das regras haver mesmo sindicatos - sim, sindicatos - de críticos.
Se invoco esta nunca referida situação profissional não é certamente por motivos pessoais, é antes porque ela supõe uma pública desconsideração, de periodicidade mais ou menos cíclica, sendo-me óbvio que na actual situação de crise agudizada da imprensa escrita em Portugal, e mesmo de bloqueio em fazer face a essa, se atravessa uma fase particularmente periclitante - e isso mesmo para além das mutações gerais das mediações críticas que advêm da aceleração dos tempos e das novas constituições tecno-sociais de redes.
Sucede ainda que, e em relação ao exemplo referido dos prémios da APCT, os galardoados representam atitudes absolutamente opostas. Enquanto Luís Miguel Cintra tem várias vezes lamentado o desaparecimento de textos críticos que publicamente problematizassem a relação de um espectador com um espectáculo, Ricardo Pais, para mais director de um Teatro Nacional, para mais num jornal desse teatro, "Duas Colunas" (nº 12, Junho de 2004), ou seja, em imprensa estatal, saudou como "finalmente inaugural, na enunciação precisa dos traços legitimadores de um exercício de crítico teatral digno desse nome" (e é um director nacional que define os traços legitimadores da crítica?!), um vil exercício sim de obscuro ajuste de contas, que tanto mais o era quanto os atingidos, o cronista Eduardo Prado Coelho e o crítico João Carneiro, tinham até pouco antes sido dos mais constantes apreciadores públicos do trabalho do encenador-director nacional, suporia eu que até bastante indulgentes.*
Faz-me esse exemplo ocorrer um outro, mais dúbio mas a outro título não menos preocupante. Foi amplamente noticiada a providência cautelar interposta pela Oficina do Livro e Margarida Rebelo Pinto contra a publicação pela Objecto Cardíaco de "Couves e Alforrecas" de João Pedro George, solicitação considerada improcedente. Todavia a juíza também entendeu que algumas expressões, incluindo uma tão óbvia paráfrase como "caso mental" ou uma estrita apreciação como "a escrita toca as raias do mau-gosto e do anedótico", eram susceptíveis de se revelarem ofensivas, deixando assim a sugestão da acção cível - facto que, tanto quanto me apercebi, apenas foi devidamente comentado por Luís Mourão no seu blogue, http://blogmanchas.blogsopt.com/2006/05/margarida-rebelo-pinto-ganhou.html.
Supõem também estes exemplos um problema mais lato, que sendo o da dificuldade da aceitação de crítica, é afinal a de genérica debilidade de "cultura crítica" no espaço público português. E por isso importa ter sempre presente a situação da imprensa escrita nesse espaço público e a difícil existência de específicos espaços críticos naquela.
Perante a evidência das tecnologias, das imagens e do imediatismo, as possibilidades da imprensa escrita tanto mais dependerão dos seus vectores de diferença, de enquadramento, de trabalho no tempo e também de capacidade reflexiva, bem como da clara identificação dos segmentos próprios de públicos.
Não me é nada claro que na difícil relação entre velhos e novos media, a presente situação tenda à consagração de um declínio irreversível dos primeiros, que é a outra face de um profetismo tonto que supõe que com a "net" se instaura a possibilidade de acesso e partilha de bens comuns, se calhar até gratuitos (como num destaque deste jornal há algumas semanas). Pergunto-me se, sabendo sempre é certo que já não em exclusivo, não há também uma vocação civicamente formativa que a imprensa escrita tem de recuperar.
Ora, a crítica, o discurso crítico, é matéria escrita. Pode ser impressa ou não, mas a razão crítica supõe a escrita; noutros media comenta-se, recenseia-se, mas não se explana criticamente um raciocínio. E isso exige espaço. Como supõe escolhas.
Algo que particularmente me choca num tom crítico vigente é a indiferença da funcionalização. Em primeiro lugar, raros os críticos que são suficientemente considerados nos próprios orgãos em que colaboram de modo a que, tendo uma intervenção regular e portanto estando eles também assim sujeitos a escrutínio público, se possam por um lado credibilizar e por outro tornar suficientemente identificados, de molde a que qualquer leitor possa também achar que as opiniões de x ou y lhe interessam. Em segundo lugar, praticamente não vejo crítico algum disposto a verdadeiramente pugnar por um objecto do apreço (ou contra outro), de dizer, eu vi isto, eu li, nem sabia, ou nem esperava, mas venho aqui dizer atenção é mesmo importante, o apreço que tive na descoberta gostaria que também o tivessem.
Em vez disso, leio recensões indiferenciadas, sei até de um crítico de música que só vai aos concertos ou espectáculos musicais se o jornal lhe solicitar que faça a crítica, etc. numa lei do menor esforço que até pode ser compreensível pela situação; pois se há um atrofiamento do espaço, e se as remunerações são provavelmente miseráveis, para quê mais esforços, que de qualquer modo nem conseguiriam ser impressos?
Mas desse atrofiamento resulta uma reiteração que é o mesmo do mesmo do mesmo, a consensualização que nega a pluralidade do debate crítico e mesmo uma das vertentes do pluralismo no espaço público - e nesse sentido, a remissão da crítica para possíveis publicações especializadas ou universitários, é-me inaceitável, nesses termos de remissão, como algo de expelido.
Na presente anemia crítica confluem muitos factores, mas essa é em qualquer caso indissociável de uma evidente crise da imprensa escrita em Portugal, que foi o quadro que originou esta reflexão. Entenda-o quem quiser.
Auguto M. Seabra
Se eu quisesse um exemplo concreto da relação entre a formatação da opinião publicada, ou presente no espaço público em geral, e a diluição dos espaços críticos, tópico abordado no artigo anterior, não poderia ter imaginado mais eloquente exemplo que as páginas que o PÚBLICO de segunda-feira, dois dias depois portanto, dedicava a Vasco Pulido Valente - e logo o opinador que eu tinha apresentado como paradigma de uma "síndrome de discurso".
O cronista opina na última página deste jornal à sexta, sábado e domingo. Na passada semana foi também objecto da emissão triplicada do Diga Lá Excelência, na 2, Renascença e PÚBLICO. Disse o que sempre diz, há muito muito tempo, e repete nas agora suas colunas de fim-de-semana. Então porquê?
Acaba ele de publicar uma biografia, "Um Herói Português - Henrique Paiva Couceiro" (Alethêia). De facto, o pretexto contava pouquíssimo na entrevista, mas entretanto o livro, era, ao lado, objecto de recensão por parte do entrevistador do PÚBLICO; o próprio director do jornal, José Manuel Fernandes - que, de resto, e no improvável caso de dúvidas haver, reiterava no Editorial as suas afinidades ideológicas com posições do opinador. Como, de resto, tinha sido o mesmo Fernandes a fazer a recensão imediata do dito "livro em tempo real" (mas isso existe?) de outro destacado colunista com o qual tem também patentes afinidades: "Quid Erat Demonstradum" de Pacheco Pereira (Alethêia também).
Eu entendo que as instituições e mediações culturais são incompatíveis numa sociedade aberta com regimes de opacidade generalizada e que como tal devem também estar sujeitas ao escrutínio público - e tenho procedido a essa análise, aliás até com o apoio público do director deste jornal, como me cabe registar. Pela mesma ordem de razões, todavia, é-me também inaceitável que haja dois níveis distintos, quais "elite" e "plebe", o primeiro sendo inimputável, tendo todos os canais de opinião e eventualmente sobre tudo se pronunciando, até ao caso limite, caso limite mesmo por certo em sociedades abertas, de um "oligarca de opinião" como Pacheco Pereira, que além do blogue e dos ecos surge à quinta-feira em triplicado no PÚBLICO, na "Sábado" e, por via da SIC-N e da Quadratura do Círculo, no "Diário de Notícias", "elite" que quando publica logo tem a imprensa a seus pés, só à "plebe" se apontando as suas inegáveis faltas.
Assim, e até porque também na segunda-feira o caso apontado no primeiro destes artigos, o do destaque dado no 6ª do "DN", suplemento de que é editor Nuno Galopim, ao livro "Retrovisor" do mesmo Galopim, era o motivo da coluna do provedor daquele jornal, José Carlos Abrantes, há também algumas questões de ética crítica que se impõe esclarecer.
Não vejo também por que precaução ética os jornalistas ou colaboradores de uma publicação, autores de um livro ou de um qualquer outro tipo de objecto ou projecto, devam ser penalizados por uma não-abordagem nessa mesma publicação. Mas não só há várias publicações que em casos desses recorrem a críticos exteriores, como é regra geral que a relação do autor com o jornal ou revista seja devidamente assinalada - lembro-me até de uma crítica de Nicolai Ourossof no "New York Times" à renovação da Morgan Library por Renzo Piano, em que ele não deixava de assinalar ser aquele também o arquitecto do novo edifício do jornal.
Diferentemente, verifico ser prática corrente na imprensa portuguesa, e afinal sem diferenças de nível, e até com frequência reiterando a dita "elite", como à frente também se notará, as proximidades aos jornalistas e colaboradores também autores, para além dos casos manifestamente escandalosos em que aqueles acabam por de um modo ou de outro interferir nos modos de edição da "crítica" ao seu trabalho.
Mas o exemplo do pretexto do novo livro de Pulido Valente é tanto mais relevante quanto coloca uma outra questão, nodal. Digamos que é a do binómio reiteração/atrofiamento, reiteração de uma opinião formatada e atrofiamento do espaço crítico.
Há algum tempo Pedro Mexia fez no seu blogue, Estado Civil, um "post" sobre "um curioso mecanismo de reprodução e repetição: quem aparece umas vezes nos "media" é logo convidado para dar a sua "opinião" sobre tudo e mais umas botas", e dava exemplos de temas sobre os quais tinha sido convidado a pronunciar-se, tendo declinado por entender ter sobre os mesmos "opiniões banalíssimas". Como se infere, na procura dos depoimentos por partes dos jornais e dos "media" em geral, importa mais o nome, a reiteração, que a opinião especializada - até porque a primeira é mais óbvia e dá menos trabalho. E por isso importa também interrogar - é mesmo prioritário - como ocorre neste processo a mediação jornalística.
Num sentido mais tradicional, e por certo atávico também, "a crítica" tende a apresentar-se como procuradora dos interesses do "público". Por maioria de razões, é esse também um fundamento do discurso jornalístico, que em última análise pode tender para a possibilidade de se instituir como mediador generalizado, incluindo de apreciações. O que sucede então, o que está tão gravosamente a ocorrer neste momento? Há uma precedência do discurso jornalístico que ainda mais atrofia a possibilidade de espaços especificamente de crítica qualificada nos próprios "media".
Diz-me a experiência de leitor do PÚBLICO que, tendo alguém feito uma nota sobre o livro de Pulido Valente, o caso está encerrado, ou seja, e tanto mais que as ciências sociais são o sector em que o Mil Folhas se tem mostrado mais carente, será escusado esperar por outra opinião mais desenvolvida, segunda opinião ou opiniões contrastantes sendo de resto práticas genericamente perdidas.
Mas como decididamente a actualidade teima em vir ao encontro das minhas preocupações, há mais outro exemplo no PÚBLICO. No domingo, no Nacional, numa coluna de Biblioteca, o jornalista Nuno Sá Lourenço discorria sobre o livro de António Medeiros "Dois Lados de Um Rio - Nacionalismo e Etnografia na Galiza e em Portugal" (Imprensa das Ciências Sociais).
Como leitor, e mesmo arquileitor do PÚBLICO, aprecio e regozijo-me que em cada editoria haja também um esforço para fornecer instrumentos de leitura e interpretação; por exemplo, sigo sempre atentamente a coluna Um Livro por Semana na secção Mundo. Mas no exemplo que cito, o voluntarismo é de uma total desadequação ao objecto, logo patente no título "Alguém explica as bandeiras nas janelas...". Observador da actualidade, como lhe compete, e nós leitores dele esperamos, o jornalista abordou contudo um livro sobre "nacionalismo e etnografia na Galiza e em Portugal" com um prévio programa de leitura condicionado pelo real imediato: o nacionalismo patente nas bandeiras nas janelas, à procura de uma explicação "científica" para isso. O resultado do desencontro está dislexicamente à vista, para perda geral, porque nem o livro é introduzido ao público, nem Nuno Sá Lourenço encontra eco para as suas preocupações e consegue transmitir instrumentos de compreensão aos leitores. E, no entanto, até poderia ter recuperado, mesmo sendo de antes das bandeiras nas janelas, "Portugal, A Equipa de Todos Nós, Nacionalismo, Futebol e Media" de João Nuno Coelho (Afrontamento).
É então altura de recordar que o primeiro texto desta série terminava com o enunciado de três questões fulcrais à actual situação crítica: 1) uma marginalização informativa do espaço da cultura, 2) uma informação tantas vezes apressada e pouco trabalhada, que transmite com escasso tratamento os diversos discursos "oficiais" e 3), como corolário, uma secundarização da crítica, desde logo pouco considerada nos orçamentos, favorecendo agendamentos de diversas proximidades imediatas.
Acontece que o último e delicado ponto orçamental, conjugado com a autêntica lei da precedência jornalística, pois nisso está erigida, produz uma situação assaz gravosa: em grande parte as "críticas" estão atribuídas a jornalistas, certamente nalguns casos porque têm competências, mas - e é esta a tendência gravosa instalada - porque poderão estar disponíveis e não comportam custos adicionais.
E então pode bem observar-se o binómio reiteração/atrofiamento. Desde logo pela reiteração de generalidades e atrofiamentos de discursos críticos. Mas também, inclusive, pela reiteração dos mesmos protagonistas do espaço público.
Foi ver, por exemplo, na esquizofrénica relação entre Pacheco Pereira e os "media", que o primeiro passa a vida a fustigar e os segundos a consagrá-lo, como na recepção a "Álvaro Cunhal - Uma Biografia Política 3" (Temas e Debates) se multiplicaram capas e primeiras páginas, e, no entanto, e ainda mais dada a importância da obra, não foram solicitadas outras perspectivas historiográficas. Mas houve sobretudo a folhetinesca cobertura de "Bilhete de Identidade" (Alethêia, ainda), com que a autora de "Os Filhos de Rousseau", Maria Filomena Mónica, entendeu seguir as pisadas do filósofo que apresenta como fonte dos malefícios e fazer as suas próprias "confissões". Há em obras destas questões de "transparência e obstáculo", para retomar o título do admirável estudo de Jean Starobinski sobre as "Confissões" de Rousseau, de compreensão das peculiaridades do que Philippe Lejeune designou por "pacto autobiográfico", que foram completamente sonegadas na quase totalidade das recensões e das hiperbólicas adjectivações. A identificação foi reiterada, o discurso crítico ocultado.
Mas se nesta parte III acabei por só me ocupar de livros, de modo nenhum as questões críticas se ficam por aí, e de resto a lei da precedência jornalística e as regras de agenda, bem como o escasso tratamento da informação, têm bem graves implicações noutros campos.
(continua na próxima semana)