Textos da Internet

25.1.05

 

Bem-vindas as Críticas

Por FRANCISCO LOUÇÃ
Terça-feira, 25 de Janeiro de 2005

i com atenção as críticas que Eduardo Dâmaso e Ana Sá Lopes dirigiram à minha intervenção no debate com do Dr. Paulo Portas. São bem-vindas as críticas, mas creio que partem de uma interpretação errada. Vale a pena, por isso, fazer um esclarecimento.

De facto, indignei-me e continuo a indignar-me quando os defensores da prisão das mulheres que abortaram acusam os defensores do respeito pelas mulheres de atentarem contra o "direito à vida". Por outras palavras, de serem cúmplices de assassinato. A criação da vida é uma responsabilidade e experiência inteiramente pessoal. Ninguém, e provavelmente ainda menos quem a vive, pode tolerar ser tratado com este desprezo infinito da acusação de homicídio pela sua opinião sobre uma lei. A vida não se discute e o que está em causa na política portuguesa é outra questão: é exclusivamente saber se a mulher deve ter o direito de fazer uma escolha sobre a sua maternidade ou se deve ser presa se abortar. Eu continuo do lado da liberdade e o meu adversário não.

Interpretar este debate como uma imposição moralista acerca da bondade de um determinado modelo de família seria surpreendente. Os meus críticos sabem bem que me tenho batido contra todas as tentativas de imposição, por parte do Estado, de qualquer modelo de família estandardizado e que propus e votei no parlamento - contra o PSD e o PP - a lei das uniões de facto. Continuarei sempre a defender esse direito, mesmo sabendo como sofri insinuações e calúnias construídas a partir dos preconceitos ou da surpresa de tal questão de liberdade ser pela primeira vez trazida para a agenda política. Essa lei garante, ao contrário da que estava em vigor, a inclusão de todos, sem qualquer tido de discriminação - e essa é a garantia de respeito que a República deve dar aos seus cidadãos. O resto, a escolha de modo de vida de cada pessoa, é, como sempre foi, estritamente do domínio do privado e não faz parte, em nenhuma circunstância, do debate político.

A diferença entre a posição política da esquerda e a do Dr. Santana Lopes ou do Dr. Paulo Portas, em contrapartida, é do domínio do debate e é decisiva nestas eleições onde se defrontam dois campos: toda a esquerda unida propõe uma lei moderada, nos exactos termos das leis europeias, que termine o ritual de humilhação nos tribunais; a direita unida propõe a manutenção da lei e em consequência da pena de prisão de 3 anos para as prevaricadoras. Mais ainda, o debate de hoje não se trata de um mero remake do passado, porque o argumento do "direito da vida" implica forçosamente que as actuais excepções da lei viessem a ser anuladas se a direita para tal tivesse maioria e muitos dos seus dirigentes já nem o escondem. Essa é claramente a posição de vários candidatos a deputados pelo PP e pelo PSD: a mulher violada que recorra ao aborto deve ser punida nos termos da lei com os mesmos 3 anos de prisão. É ainda notório que deputadas e deputados do PSD comprometidos com um novo referendo e com a descriminalização do aborto foram afastados das listas.

Para não deixar dúvidas, o partido do Dr. Paulo Portas fez campanha nas vésperas da revisão constitucional pelo reconhecimento da "personalidade jurídica do feto". O que implicaria que a moldura penal do crime de aborto passaria de 3 anos para no mínimo 8 anos de prisão e a anulação de todas as excepções da actual lei. Fê-lo com a pouca convicção de quem tem vergonha da sua própria posição, mas não deixou de o fazer, para responder positivamente a quem também defende que mesmo o uso do preservativo é um pecado. Mais uma vez, quem esteve do lado da liberdade foi a esquerda e não o fanatismo da direita.

E esta é a questão de hoje: ou uma posição moderada vence no único país da Europa onde ainda há julgamentos de mulheres por "crime" de aborto, ou o fanatismo intransigente continua. Não sei se o defendi sempre da forma mais esclarecedora, mas os leitores do "Público" que concordem ou que discordem da minha opinião sabem que não tenho outro compromisso que não seja com a liberdade e responsabilidade para a mudança desta lei, a partir da clareza da decisão democrática.

deputado e dirigente do Bloco de Esquerda

22.1.05

 

http://www.warholstars.org/

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Bloco Acusa Portas de Não Levar Conservadorismo às Últimas Consequências

Por NUNO SÁ LOURENÇO
Sábado, 22 de Janeiro de 2005

As principais figuras do Bloco de Esquerda (BE) colocaram-se ontem ao lado do dirigente e cabeça de lista por Lisboa, Francisco Louçã, nas críticas a Paulo Portas relativamente à sua posição sobre o aborto.

Depois de Louçã ter afirmado anteontem, num debate no canal televisivo SIC-Notícias, que o líder do CDS, Paulo Portas, não tinha "o direito a falar de vida" por não ter filhos, todos os bloquistas contactados pelo "PÚBLICO" destacaram a "hipocrisia" de Portas e desculparam Louçã com o "contexto" das suas declarações.

João Teixeira Lopes, deputado e cabeça de lista pelo Porto foi um dos que justificou as declarações de Louçã "Há um limiar de hipocrisia muito forte da parte de Paulo Portas, que constrói uma fachada de conservador, de homem de Estado, mas que depois não a leva até às últimas consequências". Ou seja, segundo o deputado bloquista, para ser fiel aos princípios que professa Paulo Portas deveria constituir família e ter filhos. Teixeira Lopes acrescenta que "naquela situação concreta pareceu legítima a argumentação de Francisco Louçã" por que serviu para "desocultar esse tipo de hipocrisia".

Questionado sobre se, perante Portas, recorreria àquele tipo de argumentos, Teixeira Lopes afirmou não saber, não indo mais longe do que a afirmação da garantia que "no BE não há comportamentos 'standard'".

Luís Fazenda foi um dos que frisou o "contexto" para explicar as afirmações. "Isso tem um contexto", começou por dizer o número dois da lista por Lisboa, Luís Fazenda, para depois lembrar a forma como os membros do BE têm vindo a ser catalogados pela direita. "Com que autoridade se considera que todos os outros [que não defendem a mesma posição da direita] estão a atentar contra o direito à vida", pergunta o deputado depois de salientar a "enorme arrogância da direita".

A também candidata Ana Drago afirmou, por seu turno, que o dirigente do BE "acabou por expressar a indignação" que foi já sentido por muitos por serem "atacados como assassinos".

Helena Pinto, dirigente e também candidata, defende Louçã acusando Portas de "passar das marcas": "Paulo Portas acusa quem defende a interrupção voluntária da gravidez de defender a morte." Para Helena Pinto, o que Louçã fez foi "usar o seu exemplo pessoal para responder a uma acusação muito grave".

A única crítica partiu de Luís Januário, terceiro candidato do BE à Assembleia da República por Coimbra, que classificou no blogue "A natureza do mal" as afirmações de Louçã como "uma grosseira utilização da biografia privada do opositor, sem ligação aos temas em debate, e introduzindo um aspecto irrelevante para a bondade dos argumentos."

Miguel Portas, o único eurodeputado do BE, escusou-se comentar por estar envolvido o seu irmão Paulo Portas. José Manuel Pureza, cabeça de lista por Coimbra, não comentou por não ter assistido ao debate.

O aborto foi o tema com que terminou o frente-a-frente entre Portas e Louçã. A troca de palavras mais tensa foi espoletada depois de Portas ter afirmado: "Há uma vida que tem o direito a nascer ou não, de acordo com o BE não tem, de acordo connosco tem." Louçã reagiu ao líder do CDS atirando-lhe: "Não me fale de vida, não tem direito a falar de vida", interrompeu. "Quem é o senhor para me dar ou não o direito de falar? O direito dá a Constituição e o povo que é democrata.", protestou Paulo Portas, enquanto Louçã, imparável, prosseguia: "O senhor não sabe o que é gerar uma vida. Não tem a mínima ideia do que isso é. Eu tenho uma filha. Sei o que é o sorriso de uma criança. Sei o que é gerar uma vida."

A frase
"O senhor não sabe o que é gerar uma vida. Não tem a minima ideia do que isso é. Eu tenho uma filha. Sei o que é o sorriso de uma criança. Sei o que é gerar uma vida."

19.1.05

 

Vivemos Paralisados pela Inveja José Gil

Paulo Moura

Pública - Depois da leitura do seu livro, é impossível não se ficar deprimido.

José Gil - Hesitei muito antes de o publicar. Decidi fazê-lo, porque acho que estas coisas devem dizer-se publicamente, e não apenas em circuitos fechados, como habitualmente. E também porque penso ter encontrado um fio condutor, que dá

unidade a tudo o que afirmo.
P. - É aquilo a que chama "não inscrição". Que significa?

R. - Significa que os acontecimentos não influenciam a nossa vida, é como se não acontecessem. Por exemplo, quando uma pessoa ama, esse sentimento não afecta a outra pessoa, objecto do amor. Quando acabamos de ver um espectáculo, não falamos sobre ele. Quando muito, dizemos que gostámos ou não gostámos, mais nada. Não tem nenhum efeito nas nossas vidas, não se inscreve nelas, não as transforma. Ainda outro exemplo: o primeiro-ministro, Santana Lopes, classificou a dissolução da Assembleia da República pelo Presidente como "enigmática". Não disse que era incorrecta ou injusta, mas "enigmática", o que é a forma mais eficaz de a transformar em não-acontecimento.
P. - E, não tendo acontecido, ninguém é responsável.

R. - Exactamente. Pode-se continuar como se nada se tivesse passado. Os acontecimentos não se inscrevem em nós, nem nas nossas vidas, nem nós nos inscrevemos na História. Por isso, em Portugal nada acontece.
P. - Isso vem de onde?

R. - Do medo. E da falta da ideia de futuro. Vivemos num presente que se perpetua. Não se inscreve em nós o futuro nem o passado, a História. Porque temos medo.
P. - E de onde vem o medo?

R. - Uma vez fiz essa pergunta a José Mattoso. Perguntei-lhe se vinha do salazarismo. Ele respondeu: "Muito antes disso." Mas não precisou de onde. Acho que ninguém sabe. Claro que no chamado "antigo regime", ou no feudalismo, imperava um medo real, físico.
P. - Mas isso acontecia em toda a Europa. Específico de Portugal é esse medo não ter cessado?

R. - Sim. Existiu durante o salazarismo, que vivia do medo. Tínhamos medo de tudo.
P. - Mas era um medo hierárquico, de cima para baixo. Como se transformou num medo do nosso semelhante?

R. - Acho que no salazarismo já havia um medo do semelhante, além do hierárquico, que desapareceu, porque estamos numa democracia. Mas herdámos o medo, que se transformou. Acho que a principal razão foi por que não criámos suficientes instrumentos de expressão.
P. - É através da expressão que nos podemos livrar do medo?

R. - Nós temos uma pobreza enorme de expressão em relação à nossa existência. O que sabemos de nós, hoje, é pouquíssimo. Por exemplo: o que uma mulher pode sofrer, com a sua condição de inferioridade social, com os dramas domésticos... Tudo o que se diz, mesmo o que aparece na literatura, não exprime o que ela poderia sentir, e acaba por fazer com que ela não possa sentir o que verdadeiramente sente.
P. - Não pode sentir, porque não o pode exprimir?

R. - Sim. A expressão abre para o fundo, não apenas para fora. Mas nós estamos agarrados a um texto e não temos forças para sair dele.
P. - Uma espécie de norma?

R. - É o texto da sociedade normalizada, do bom senso, do política, social e afectivamente correcto. Assisti há dias a uma discussão de um casal, num jardim. O marido dizia-lhe: "Não aqui! Não aqui!" E a mulher calava-se logo. Temos um texto que nos diz o que podemos viver.
P. - É o medo que nos impede de rasgar esse texto?

R. - Nós temos medo de experimentar. Porque temos medo do que irão dizer de nós. Partimos sempre do princípio de que o que vão dizer é negativo, desvalorizante. Dificilmente alguém dirá: "Que bom o que tu fizeste. Estou muito contente." Não. Vão-nos decerto criticar. Isso cria logo um medo que nos paralisa. Faz com que tenhamos prudência. Bom senso.
P. - Mas a prudência e o bom senso poderiam ser atitudes positivas, para nos guiarem na acção...

R. - Qual acção? A prudência paralisa a acção.
P. - Então não é uma verdadeira prudência.

R. - Pois não. A verdadeira prudência seria uma estratégia para medir e modular a acção, à medida que ela se desenrola. Mas nós não queremos é agir. Porque a sociedade portuguesa, ao contrário de outras, é fechada, não tem canais de ar, respirações possíveis. É uma sociedade suavemente paranóica. As pessoas estão demasiado conscientes de si próprias, o que é um horror. Conscientes da imagem que possam produzir, da sua presença como imagem nos outros. Isso é paralisante.
P. - Damos muita importância à nossa imagem?

R. - É uma obsessão. Estamos sempre a falar da auto-estima, esse termo horroroso.
P. - O que há de errado com a auto-estima?

R. - Essa ideia reflexiva, de nos amarmos a nós próprios... Em vez de estarmos virados para fora, para os outros, para o mundo. Só nos podemos afirmar agindo, exprimindo-nos - não voltando-nos para a autocomplacência. Tudo o que é válido vem "de fora". Nós ainda temos essa ideia de que é preciso começar por uma transformação interior... Mas, em Portugal, não existe um "fora".
P. - Isso quer dizer que não existe um espaço público?

R. - Não, não existe. O salazarismo extinguiu-o. Depois do 25 de Abril, passámos do zero para o máximo de expressão. Mas não tínhamos os instrumentos para essa expressão. Por isso, as forças reais do poder-saber, políticas, voltaram a dominar. Toda a nossa expressão individual, social, passou a reduzir-se ao discurso político. E no espaço público instalou-se em força um dispositivo que ocupou o lugar todo: a televisão, e os "media" em geral.
P. - Os "media" não são espaço público? Funcionam em circuito fechado?

R. - Movem-se em circuito fechado. Têm uma acção de absorção. Só se existe se se aparecer na televisão. Mas estar e aparecer na televisão não é a mesma coisa do que viver a vida, na materialidade das ruas e do tempo.
P. - Mas isso não é um fenómeno exclusivamente português.

R. - Não, mas em Portugal a televisão criou um espaço de imagem antes de termos passado por aquilo a que podemos chamar um "espaço de terrível liberdade", de experimentação, de inscrição, que foi a modernidade.
P. - Houve um salto. Mas isso nunca se vai recuperar.

R. - Com certeza que não se vai voltar atrás. Mas é preciso recuperar aquilo que nos é sugado por esse espaço de imagem e que é a vida dos corpos. Os acontecimentos da existência, no que têm de invenção. Na televisão tudo está formatado, não há imprevisto, encontro. O acontecimento é o resultado de um encontro. Mas nós temos medo do acontecimento. Medo da mudança, medo do futuro, medo do julgamento dos outros, medo de não sermos capazes. Medo de não estar à altura do acontecimento.
P. - É um medo da responsabilidade, um medo infantil?

R. - Sim, a nossa sociedade tem algo de infantil, mas sem a vivacidade das crianças. É a outro nível que temos de ter vida. O português não é um adulto autónomo por si. Uma comunidade de crianças não é o mesmo que uma comunidade de adultos. Nós ainda não chegámos à comunidade de adultos. Há pormenores... o tratamento por "pá", por exemplo...
P. - Traduz uma grande familiaridade, ou é outra coisa?

R. - É o reconhecimento de que o homem é nu, para usar uma terminologia de Hanna Arendt.
P. - Serve para colocar o outro ao mesmo nível, como que a dizer-lhe: a mim não me enganas?

R. - Sim, e somos iguais. Vou contar-lhe uma cena que me espantou: quando o Jorge Sampaio era presidente da câmara, apareceu na televisão a passear pelo Casal Ventoso com uma série de delegados de Bruxelas. Quando foi abordado por um drogado, disse-lhe: "É pá, afasta-te, que estou aqui a ver se sacamos algum dinheiro a estes tipos." Isto é extraordinário.
P. - Não resistiu a estabelecer uma cumplicidade com o drogado.

R. - Sim, como se ele fosse da mesma...
P. - Laia.

R. - Exactamente, laia. Nós, que somos iguais, inferiores, estamos a ver se sacamos... O Sampaio é muito expressivo de certas coisas portuguesas.
P. - Cultivamos uma intimidade forçada, pouco natural, promíscua?

R. - Sim, há uma promiscuidade social que se deve à falta de autonomia individual. O salazarismo infantilizou-nos, fez-nos viver num mundo fictício e sugou-nos todas as forças. Eu não quero culpar o salazarismo por tudo, mas a verdade é que foram 48 anos de não inscrição, de não acontecimento. E herdámos isso. Ainda não recuperámos. O ambiente em que vivemos não nos permite ter intensidade de vida, de pensamento, de acção, para que possamos inscrever-nos na nossa própria vida, na Europa, no mundo global, etc. Uma vez assisti a uma entrevista com o jovem físico português, João Magueijo, que vive em Inglaterra. A repórter perguntava-lhe: "Você trabalha com matemática, não em laboratórios. Não podia ter descoberto essas teorias em Portugal?" E ele respondeu imediatamente: "De maneira nenhuma. Sabe porquê? Por causa da intensidade das trocas de pensamento em que eu vivo quotidianamente. É isso que me faz pensar."
P. - A influência "do fora".

R. - Absolutamente. É essa intensidade que nos falta. Nós somos tão inteligentes como os outros. Somos inventivos, produzimos. Mas caímos nisto.
P. - A incapacidade de agir vem de dentro, do nosso medo. Mas, quando alguém tenta, o que acontece? Temos a aprovação ou a sanção dos outros?

R. - Uma sanção terrível. É o mecanismo da inveja.
P. - Não agimos, mas também não deixamos ninguém agir. Como funciona esse mecanismo?

R. - O mecanismo da inveja tem a ver com práticas da magia, o "mau olhado", o "quebranto", e também com o que em psiquiatria se chama "transferência psicótica", ou seja, o que passa de uma pessoa para outra e não é verbal. Imagine que você chega ao pé dos seus colegas e diz: "Fiz uma reportagem extraordinária!" E não está a falar por vaidade, mas objectivamente. Mas logo o tipo que está a seu lado diz: "Ai sim? Pois muito bem." E com este tom introduz em si um afecto inconsciente que o vai paralisar.
P. - É um mecanismo semelhante ao do ostracismo?

R. - Exactamente. Cria-se um ambiente que é hostil à iniciativa e que tem um efeito sobre a própria vontade de querer fazer. Isto é generalizado em Portugal. A inveja é mais do que um sentimento. É um sistema. E não é apenas individual: criam-se grupos de inveja. Várias pessoas manifestam-se simultaneamente contra a sua iniciativa. Cria-se um ambiente de inveja. Um grupo determinado age segundo os regulamentos da inveja.
P. - É uma atitude concertada ou inconsciente?

R. - Pode ser concertada ou inconsciente, mas funciona. Não se permite que numa empresa, num escritório, ninguém ultrapasse a linha da média baixa. Vivemos reconhecendo-nos como irmãos na desgraça.
P. - Mas por que se faz isso? Não seria do interesse de todos encorajar cada um a fazer melhor?

R. - Sim, mas há um efeito de espelhos. Se você faz alguma coisa de forte, isso deveria ser um estímulo para mim, para fazer algo também forte. Mas não. Vê-lo forte diminui-me a mim. Vê-lo com intensidade, com iniciativa, faz-me pensar, por causa da imagem que tenho de mim, na minha pobre condição, em que não faço nada. E faço tudo para destruir a sua iniciativa, para que eu possa viver. Você sufoca-me com a sua energia. Terrível isto. Uma pessoa sufoca a outra com a sua energia. E o resultado é que estamos todos sem energia.
P. - Mas para que essa acção da inveja tenha efeito não é necessário que a "vítima" esteja vulnerável?

R. - Precisamente. Um etnólogo pôs-me essa questão. Disse: só se é afectado pela inveja quando se quer, quando se está num estado determinado. Eu respondo: sim, em quem tem a pele grossa não entra nada. São as pessoas porosas que são fragéis. E isso é típico de Portugal. Os portugueses são sensíveis, porque não são maduros. Isso poderia ser maravilhoso. Somos pessoas de pequenas percepções, de intuições imediatas, e por isso sentimos quando alguém está a torcer para que não avancemos. Faz curto-circuito, fecha o espaço das possibilidades. É um sistema.
P. - Uma espécie de acordo tácito para que ninguém aja, ninguém ameace, e possamos viver em paz.

R. - Precisamente. Para que possamos viver em paz. Porque temos medo do conflito.
P. - Daí os "brandos costumes"?

R. - Recusamos o conflito a céu aberto, mas temos uma violência incrível na nossa sociedade. Violência doméstica em relação às crianças. Os brandos costumes escondem uma violência subterrânea enorme.
Um dos maiores pensadores de todo o mundo
José Gil, 65 anos, autor e professor catedrático de Filosofia na Universidade Nova de Lisboa, define-se como especialista no "pensamento filosófico do corpo". Entre a regência de várias cadeiras de Filosofia contemporânea e a orientação do mestrado em Estética, encontra tempo para a
escrita. É autor de numerosos ensaios, artigos em revistas culturais, entradas em enciclopédias e livros de reflexão filosófica. Os seus temas vão desde Fernando Pessoa e Salazar até à dança e a pintura. Em 1990 ganhou, com a obra "Cemitério dos Desejos", o Prémio Jacinto Prado Coelho. Recentemente escreveu "A Profundidade e a Superfície - Ensaio sobre 'o Principezinho', de
Saint-Exupéry" e, agora, "Portugal, Hoje - O Medo de Existir".
Antes de ir para França, onde se licenciou em Filosofia, na Universidade de Sorbonne, em 1968, estudou Matemática na Faculdade de Ciências de Lisboa. Em Paris, foi aluno, admirador e amigo do filósofo Gilles Deleuze. Em 1982
completou o doutoramento, na Universidade de Paris 7, com uma tese sobre "O Corpo como Campo de Poder". Ensinou no Collège International de Philosophie, em Paris, na New School for Dance Development, em Amesterdão. Regressou a Portugal em 1976, para desempenhar o cargo de adjunto do secretário de Estado do Ensino Superior e da Investigação Científica do VI Governo Provisório. A última edição da revista francesa "Nouvel Observateur" considera-o um dos "25 grandes pensadores de todo o mundo"

15.1.05

 

Os novos judeus

O mundo está mais inseguro e mais violento. Face às incertezas, as religiões apresentam-se como uma resposta possível para equações tão antigas como
a humanidade, reequacionadas porém à luz dos desafios contemporâneos.
O judaísmo surge como alternativa para milhares de pessoas, atraídas pelos seus ensinamentos espirituais, religiosos, extensíveis também à prática quotidiana. Conversámos com alguns desses simpatizantes da cultura e religião judaicas e tentámos compreender os porquês dessa atracção


PAULA MACEDO


“As religiões são a base de qualquer cultura. Nunca conheci ninguém que não fosse religioso. Podem chamar-lhe amor, água, pêndulo, Deus, mas é religioso. O marxismo-leninismo é uma pseudo-religião. A psicanálise é uma pseudo-religião. Religião vem do latim religare. É uma forma de uma pessoa se ligar ao outro. Estar em sintonia com um lado sagrado que todos nós temos como seres humanos”. Quem o afirma é o escritor Pedro Paixão, cristão assumido, “mas não católico” enfatiza, e simpatizante da religião judaica por razões afectivas.

“Tenho simpatia, empatia, a minha primeira mulher era judia e a segunda também”, conta. “Nunca pensei em converter-me ao judaísmo, mas quando estava casado com a minha primeira mulher frequentava a Sinagoga, gostava de lá estar, sentia-me bem, sentia-me em casa”, relembra o autor de numerosos livros de ficção, entre os quais, curiosamente ou não, figura um com o sugestivo título A Noiva Judia.
Pedro Paixão não é um caso isolado. Um pouco por todo o mundo, surgem novos convertidos, um processo algo moroso e relativamente complicado, ou, mais simplesmente, pessoas atraídas pelos fundamentos e princípios espirituais de uma religião, e em sentido mais lato, de uma cultura que soube sobreviver e adaptar-se a todas as vicissitudes históricas.

Em Portugal, o caso talvez mais paradigmático de uma conversão recente é o do jornalista e escritor Francisco José Viegas (ver caixa O Puro e o Impuro). Mas não faltam exemplos de figuras públicas que se interessaram pelo estudo da cultura e religião judaicas.
Por exemplo, o igualmente jornalista e escritor Miguel Esteves Cardoso chegou mesmo a frequentar a sinagoga de Lisboa com vista talvez a uma eventual conversão que não chegou a concretizar-se.
No universo da blogosfera nacional existem igualmente blogues que referem com frequência, embora não de forma exclusiva, assuntos relacionados com a questão judaica, geralmente na quase incontornável perspectiva política das tensões no Médio Oriente.

Nuno Guerreiro, jornalista do Público agora a residir em Los Angeles, nos Estados Unidos, onde prepara um doutoramento, é autor de Rua da Judiaria, um blogue, esse sim, exclusivamente dedicado à cultura judaica.
Nuno Guerreiro não fala em conversão ao judaísmo, mas sim de um “regresso às origens familiares” e considera que “a chamada “blogosfera portuguesa” é um reflexo do país, com a vantagem de expor facetas do todo colectivo que de outra forma passariam despercebidas à vista desarmada”.

Ou seja, em relação à existência deste fenómeno, chamemos-lhe assim, “só poderá surpreender-se quem desconheça as realidades históricas dos judeus em Portugal, ou presuma que não existem judeus no país”, afirma Guerreiro.
O jornalista salienta o papel positivo que este meio de comunicação pode desempenhar: “Existe entre nós uma ignorância imensa em relação ao judaísmo. Acredito que diálogo que se vai estabelecendo na ‘blogosfera’ tem contribuído para a combater”.

Rua da Judiaria. A ideia da Rua da Judiaria surgiu há 10 meses, precisamente para combater o desconhecimento. Nuno Guerreiro explica: “Estou a preparar um doutoramento em História Judaica e, talvez por defeito, sempre me assustou a forma como é tratada a vertente judaica da nossa história. Ou melhor, a forma como esta tem sido sistematicamente ignorada”.
O jornalista dá exemplos: “Nas escolas, em Portugal, ninguém fala do massacre de 1506 em Lisboa, onde mais de 4 mil judeus e “cristãos novos” - homens, mulheres e crianças - foram chacinados e os corpos amontoados e incendiados no Rossio. Ninguém conta sequer que Espinoza era filho de judeus portugueses forçados a emigrar para a Holanda; não se fala de Isaac Abravanel, Aboad da Fonseca, Manoel Dias Soeiro, Uriel da Costa ou Isaac Oróbio de Castro. Mesmo os judeus - ou “católicos forçados” - que a história oficial regista, como Pedro Nunes, Amato Lusitano ou Abraão Zacuto, nunca são ensinados no seu contexto étnico-social, nunca são mostrados como judeus. É como se tivéssemos vergonha de descobrir quem realmente somos”, conclui.

O blogue acabou por surgir dessa constatação: “Esta foi a razão principal que me levou a criar a “Rua da Judiaria” - curiosamente, e por coincidência do destino, o nome da rua de Almada onde cresci. Reconheço que ir remendando a História com um pequeno blog é como tentar escapar da prisão cavando um túnel com uma colher de chá. Mas, de uma forma obviamente modesta, espero que o blog possa contribuir para uma redução gradual da ignorância - porque é dela que vão saindo os ódios e as irracionalidades”.
O Rua da Judiaria cresceu – “chega a ter cerca 25 mil leitores por mês, que vêm do Brasil, dos Estados Unidos, de África, da Austrália e mesmo de Israel”, conta o autor – e evoluiu “abordando temas recorrentes da actualidade e lançando mesmo o diálogo sobre temas judaicos com outros blogs que nada têm a ver com o judaísmo”.

Raízes. O que pode então estar na base deste interesse renovado pelo judaísmo? António Carvalho, jornalista do Diário de Notícias e um estudioso das religiões que considera “um factor vital para a vida das pessoas”, justifica a atracção pelos temas judaicos por “uma certa fidelidade às raízes que é importante num mundo como o nosso em que elas se perdem cada vez mais, com a globalização”.
“O judaísmo é o fundamento das três religiões monoteístas, é o tronco comum e parece-me impossível perceber as três religiões sem perceber que duas delas estão ligadas ao judaísmo”, afirma o jornalista. E aprofunda a explicação: “Jesus era um judeu que se assumiu como tal durante toda a vida. O cristianismo nasce no meio da religião judaica, com as suas práticas, as suas dissidências, confusões, crises. Como, muito mais tarde, o islamismo vai buscar elementos a esse tronco comum, ao judaísmo, e algumas coisas ao próprio cristianismo. Depois criam-se como religiões soberanas. Este meu interesse por esse tronco comum, é que faz com que eu me interesse pelas questões do judaísmo”.

Depois, para António Carvalho, há um lado histórico, mais emocional, no caso dos portugueses. “Eu sou português, são as minhas raízes; acho que um homem é como uma árvore, tem de ter raízes senão morre. Portugal é um mosaico de culturas e de influências culturais que têm a ver com essas três religiões. Percebê-las é perceber melhor o país. Acho que há uma componente judaica muito importante em Portugal, que é oculta, que está escondida, de vez em quando aflora mas que quando começamos a escavar um pouco mais ela está lá”.
Nuno Guerreiro corrobora: Existem vários factores que levam muitas pessoas a identificar-se de uma ou outra forma com o judaísmo. No caso particular português, o maior desses factores - mas não o único - é uma ligação pessoal ancestral ao judaísmo que muitos vão descobrindo”.

“É necessário fazer aqui um enquadramento histórico para que se perceba”, explica o jornalista e estudioso destas questões. “Por alturas de 1497 – ano em que os judeus portugueses foram oficialmente obrigados a converter-se ao catolicismo sob pena de morte – a população judaica portuguesa representava mais de 10% do total da população nacional. Em 2 milhões de portugueses, cerca de 200 mil eram judeus. Uma proporção imensa”.

“Esta conversão forçada em massa”, prossegue, “transforma os judeus portugueses em ´cristãos novos´, gente que fora de casa praticava o catolicismo, mas no seio da família continuava a manter as ancestrais tradições judaicas em absoluto segredo. É claro que este sentido enraizado de pertença se foi diluindo ao longo dos séculos, com o passar das gerações, mas a semente, essa, permaneceu, oculta, em muitas famílias. Mesmo assim, cinco séculos depois, ainda há avós que vão à missa mas sussurram aos netos: ´Nós somos judeus´ “.

António Carvalho, refere igualmente, a título de exemplo, nomes de figuras públicas importantes na História nacional com ligações ao judaísmo: “Estamos a falar de um Fernão Mendes Pinto, do próprio Camões, mas também de muito mais gente, o próprio Fernando Pessoa, que se considerava meio judeu. E depois há um pólo interminável de pessoas que eram assim porque tinham essa raiz que os marcou para a vida inteira”.

Atracção. Num sentido mais lato, a cultura e religião judaicas têm, de acordo com os nossos entrevistados, outros argumentos capazes de suscitar o interesse de milhares de pessoas em todo o mundo.
“É difícil dizer porque se acha alguma coisa bela, a beleza é um mistério”, diz Pedro Paixão. O escritor consegue porém definir um dos elementos da cultura judaica que considera belo e o atrai: “É uma cultura do livro. Escrevo livros e isso aproxima-me. Quando se entra numa Sinagoga não se percebe bem o que se está a passar porque não há imagens. A única coisa que há são rolos de papel. Onde está escrita a Bíblia”.
Nuno Guerreiro refere as idiossincrasias inerentes à própria religião judaica como justificação. “Tirando o aspecto genealógico, que entre nós é preponderante, enquanto religião o judaísmo é radicalmente diferente do cristianismo, apesar deste ter nascido no seu seio”, esclarece o jornalista.

“Não existem dogmas no judaísmo, tudo está aberto à discussão e essa tradição de estudo e discussão é mantida e acarinhada há mais de 4 mil anos. É em essência uma ‘religião do intelecto’, se quisermos, que preza a ética e a responsabilidade individual. Segundo o judaísmo, nós somos responsabilizados por todas as nossas acções e por elas somos obrigados a assumir todas as consequências”, prossegue.
“Há entre nós muita ignorância em relação ao judaísmo. Como se explica que se fale numa alegada ‘moral judaico-cristã’ - na minha opinião um mito absolutamente ridículo - quando, por exemplo, no judaísmo o sexo não é encarado com qualquer carga de “pecado”. No judaísmo o ‘pecado original’ é um conceito absolutamente desconhecido”, conclui.

Misterioso e diferente. “Há uma atracção por aquilo que é misterioso e diferente e o judaísmo funciona como isso, no sentido em que, até por ser uma religião pouco conhecida porque sempre foi praticada em círculos fechados e nunca houve uma preocupação de conversão, nem de prática de conversões ao contrário das outras duas”, refere António Carvalho.

O jornalista do DN prossegue: “Por outro lado, há uma riqueza espiritual dentro do judaísmo que é uma tesouro nos dias de hoje. Tem a ver com a questão da língua e o que a língua é, tem a ver com o que ficou escrito. Os judeus são contadores de histórias há milhares de anos, o próprio humor, há uma relação muito bem humorada com a vida e com o próprio Deus, montes de anedotas, as piadas judaicas existem mesmo nas piores circunstâncias. Portanto, há uma atracção por esse mundo diferente e que cativa um bocado as pessoas”.

Nuno Guerreiro conta que, através do blog tem vindo a fazer algumas descobertas especiais. “Ao poucos, a trabalhar para o blog, fui descobrindo também pequenas histórias deliciosas, como a de Jacob Rodrigues Pereira, um pedagogo setecentista, um judeu português que foge para França e acaba por tornar-se o inventor da linguagem gestual para surdos-mudos”, refere.
“Mas a minha pequena história favorita talvez seja ter descoberto por que razão os portugueses são o único povo do mundo que se recusa a ‘fazer cruzes’ quando quatro pessoas apertam mãos simultaneamente: uma tradição herdada dos judeus secretos quinhentistas que evitavam qualquer representação acidental de símbolos católicos”, conta.

António Carvalho lança mais uma pista em relação aos factores inerentes à religião judaica capazes de atrair um número crescente de pessoas: “É uma religião que tem um aspecto muito importante para a nossa própria História: o aspecto messiânico, uma esperança de que um dia isto vai dar certo, que o mundo vai ser diferente, que um dia nos podemos dar uns com os outros e viver em paz, ou como dizem os profetas nos textos fundamentais, que um dia as armas serão transformadas em relhas de arado, que o lobo e cordeiro se vão dar bem e que o mundo terá finalmente paz. Essa ideia de paz sobre a Terra, que aliás está contida na própria saudação judaica - shalom, significa paz e no próprio nome Jerusalém que significa cidade da paz, cidade mítica na qual toda a gente se deve encontrar um dia - é cada vez mais importante”.
Medo. A paz – conceito central na cultura e religião judaicas e, em última análise, aspiração última de todos os seres humanos – tem, no decurso da História Judaica, sofrido abalos graves.

Na memória colectiva do mundo, como um dos símbolos máximos do horror e da destruição, está marcado indelevelmente o genocídio de milhões de judeus perpetrado pelas tropas nazis de Hitler durante a Segunda Guerra Mundial. Mais recentemente, a profanação de cemitérios e centros culturais judaicos, em França, faz temer o ressurgimento de uma forte vaga de anti-semitismo.
Para Pedro Paixão, “sempre houve” anti-semitismo. “É um anti-semitismo latente que se vai manifestando das maneiras mais violentas ou menos violentas. Continua a ser perigoso ser-se judeu”. Para o escritor, o “Holocausto é o facto mais importante da História Ocidental e é completamente presente e actual, se não houvesse o Holocausto não haveria Israel, se não houvesse Israel não haveria os problemas no Médio Oriente tais como se apresentam, haveria outros tão violentos ou mais graves”.
Pedro Paixão vai mais longe ao apontar o medo de um segundo Holocausto. “Em Israel há esse medo. Todos os judeus têm medo de um segundo Holocausto. Foi uma coisa inesquecível, brutal, é um pesadelo tão amargo para um judeu. Como aconteceu uma vez pode acontecer uma segunda vez. É algo que está sempre latente”, refere.

Alberto Gonçalves, um sociólogo de 35 anos, que escreve crónicas na revista Sábado e no jornal Correio da Manhã , autor do blogue Homem a Dias, onde regularmente aborda aspectos relacionados com a questão judaica, afirma com ironia que o estigma em relação aos judeus é velho mas está de “excelente saúde”. Dá como exemplo precisamente o que está a passar-se em França.
“Curioso é constatar que o actual anti-semitismo conseguiu uma simpática aliança entre os saudosistas dos antigos fascismos europeus, os deserdados do comunismo e o integralismo islâmico”, prossegue Alberto Gonçalves. “Mas nem isso é propriamente uma novidade”, diz o sociólogo exemplificando com as “ligações do Terceiro Reich à hierarquia muçulmana, ou os ‘progroms’ soviéticos”, autênticas caças às bruxas contra os judeus residentes nos ter-ritórios.

Uma marca que permanece. Nuno Guerreiro não tem dúvidas de que essa marca negativa se mantém viva: “Quinhentos anos de perseguições e propaganda anti-semita não se apagam de um dia para o outro. Não nos podemos esquecer que, durante séculos, até 1965, a doutrina oficial da Igreja Católica acusava os judeus de terem morto Jesus, esquecendo convenientemente que Cristo era ele próprio também um judeu”.
O jornalista prossegue: “As perseguições da Inquisição - que prendia e condenava qualquer um que se suspeitasse possuir ligações ao judaísmo - contribuíram para acentuar na população não só uma fortíssima imagem negativa dos judeus, como também levou à sua própria desumanização aos olhos da sociedade. Ora a Inquisição só terminou oficialmente a 22 de Abril de 1821, o que em termos históricos significa qualquer coisa como ‘antes de ontem’”.

A jornalista Ana Albergaria, autora também ela de um blogue onde, à semelhança de, por exemplo, Alberto Gonçalves, faz referências constantes às questões do universo judaico, é mais uma voz de concordância em relação a este tema: “O estigma em relação aos judeus está tão entranhado no mundo ocidental que, infelizmente, parece impossível erradicá-lo. Falo do mundo ocidental, porque o anti-semitismo é uma invenção ocidental e não árabe ou muçulmana. A estigmatização, que tem por base motivos religiosos, existe desde os tempos bíblicos.

“Mas será que esse antisemitismo latente ainda existe entre as gentes de Portugal?, interroga-se Nuno Guerreiro. “Basta passear pela Internet, onde os judeus são acusados de estar por detrás das mais mirabolantes teorias de conspiração. Basta dar uma volta por aldeias do interior de Portugal e assistir a algumas festas populares. Nos arredores de Tomar ainda hoje se faz a ‘queima do judeu’ uma ‘tradição popular’ onde se deita para a fogueira um espantalho de palha. Isto, ao que parece, não choca ninguém”, conclui.

Para António Carvalho, trata-se de uma questão de base: “As nossas sociedades continuam a ter dificuldade em aceitar aquele que é diferente. As judiarias eram bair-ros em que os judeus estavam confinados. Isso tem a ver com toda uma prática de anti-semitismo, mas que não abrange apenas a História judaica. Na História de Portugal, por exemplo, a presença islâmica no país permanece oculta”.

Uma questão de linguagem. “Os preconceitos, a imagem desumanizante, perduram, muitas vezes traduzidos na própria linguagem quotidiana. Palavras como ‘judeu’, ‘judiaria’ e ‘judiar’ têm todas conotações negativas e podem ser usadas como insulto, ou descrição de insulto, mesmo em português corrente. Basta abrir um dicionário. A herança da Inquisição ainda arde em lume brando”, aponta Nuno Guerreiro.

Pedro Paixão dá também como exemplo questões de vocabulário usadas com conotações negativas: “Há tantas palavras em português desse tipo. Por exemplo, o menino rabino, rabino é Rabi”.
Ana Albergaria acrescenta algumas palavras ao léxico negativo, segundo ela, uma forma “comezinha” de como os preconceitos são accionados no dia-a-dia: “são palavras e expressões que passam de geração em geração: sovina como um judeu; ladrão como um judeu; falso como Judas, etc.”.
Mas, de acordo com a jornalista, os preconceitos não se ficam por aí: “à força de tanto preconceito incutido, e do desconhecimento em relação ao universo judaico, há também a ideia de que os judeus , fisicamente, são diferentes. O mito do nariz adunco, das barbas compridas e do olhar cúpido. O mito de que os judeus se parecem todos entre eles. Como se não houvesse judeus loiros, morenos, ruivos, brancos, pretos, asiáticos, altos, baixos, gordos e magros”.

“Nunca serei capaz de explicar o porquê do preconceito, prossegue a Ana Albergaria. “Acho, no entanto, que deve ter a ver com o desconhecimento que, grosso modo, há em relação ao judaísmo. As pessoas não conhecem os ritos, as ideias, a cultura. O que pensam é, não só errado ( são todos ricos e só pensam em dinheiro, são falsos e têm comportamentos estranhos e rituais), mas de um desconhecimento gigantesco. Sabem que os homens são circuncisados e não comem carne de porco (exactamente como os muçulmanos, mas isso também não sabem) e que não trabalham ao Sábado. Tudo o resto passa ao lado. E justamente porque o desconhecimento é muito, encaram os judeus como seres à parte. O ser humano, por norma, teme o desconhecido. E como, grosso modo também, desconhece a realidade judaica também teme os judeus”, conclui.

O que é um judeu? O que é então um judeu? O que engloba esta definição na actualidade - A genealogia; a aceitação da fé judaica; a adopção da ética, costumes e literatura judaicos; um estado de espírito; a raça?
Ser judeu pode ter várias definições, mas certamente a questão da raça não é um critério aceitável, como esclarecem os nosso entrevistados.
“Não há raças. Costumo dizer que as raças têm-nas os cães, os cavalos, os gatos, nos seres humanos não há nada disso, não acredito nessas coisas”, afirma peremptório António Carvalho. “Aliás, é muito curioso quando vamos a Israel e paramos numa praça à nossa volta e vemos a diversidade das pessoas que estão ali presentes. Não há nem características físicas, há narizes grandes pequenos médios, não tem nada a ver com o corpo belo, nem com o formato das orelhas, nem com a cor de olhos e de cabelo. Tenho amigos que são louros de olhos verdes ou azuis e que são judeus. Não corresponde a nenhum tipo físico”.

“Judeu de qual judaísmo? Religioso, étnico, político, cultural?”, interroga-se Alberto Gonçalves. “As definições variam”, esclarece, “e os consensos a propósito não se têm atingido com facilidade, mesmo entre os estudiosos. Dito isto, não sei o que é ser judeu. Sei o que é ter consciência de uma herança que nos influenciou a todos, tanto quanto a antiguidade clássica ou o cristianismo. Sei o que é valorizar a razão e o conhecimento e o progresso. Sei a importância da noção de responsabilidade individual. Sei o respeito que nos devia merecer a liberdade”.
“Ao longo do tempo, os judeus foram definidos como um grupo étnico, uma nação e um grupo religioso. Nenhuma destas etiquetas estanques os define por completo hoje em dia”, afirma Nuno Guerreiro.

“Há judeus que não acreditam em Deus e outros que são religiosos mas não se consideram parte de uma nação. Há judeus ruivos na Lituânia, e judeus negros no Uganda e na Somália. Há judeus chineses e judeus árabes do Yémen. Há judeus com grandes narizes, tal como há cristãos narigudos”, diz o jornalista.
Nuno guerreiro prossegue: “Em termos religiosos, para mim, ser judeu é ser-se intrinsecamente monoteísta. É acreditar num Deus único - que não é trinitário e não tem intermediários - que nos deu regras mas que não interfere com as nossas escolhas. É tentar evoluir espiritualmente de dia para dia e perceber que temos de assumir completa responsabilidade por cada acto que praticamos, porque todos eles, mesmo os mais insignificantes, têm consequências. Em suma é acreditar em regras espirituais às quais se aplicam os mecanismos de causa e efeito da física newtoniana”.
Pedro Paixão acrescenta:
“É cumprir os mandamentos.
É acreditar, ter fé, esperança.
É combater pela paz e pela justiça”.
Ressalvando existirem entre os próprios judeus “uma diversidade de opiniões em relação a esta questão controversa”, António Carvalho remata: “Acho que o judeu é uma atitude de espírito, é uma atitude interior, é um acerto da visão do mundo”.

O Puro e o Impuro
“Agora, no Grande Muro, ouve-se a oração/ dos árabes - Alá canta às cinco da tarde,/ mas não anuncia o repouso da terra. As ruas/ vão ficando desertas/ as velas acesas,/ o vinho aguarda na mesa conforme os séculos/ aguardaram pela ilusão da beleza e/ pela graça do tempo (...)”. Assim começa “O Shabbat em Jerusalém”, um dos poemas incluídos em “O Puro e o Impuro”, último livro de poesia de Francisco José Viegas, um caso recente de conversão ao judaísmo. Aliás, o ex-director da Grande Reportagem tem, desde há algum tempo, revelado forte interesse pela questão de Israel. Escreveu para a referida revista um longo trabalho sobre a estadia no país e, no seu blog, Aviz, é um comentador assíduo da questão israelo-palestiniana.

“Desinformação e jornalismo vesgo e mal amanhado”
Para além da Rua da Judiaria existem alguns blogues com referências à cultura e religião judaicas. Conversámos com alguns dos seus autores que, geralmente, assumem uma perspectiva mais política com referências actualizadas sobre o conflito israelo-palestiniano.
São vozes contra a corrente dominante numa Europa onde a opinião pública é maioritariamente pró-palestiniana.
Alberto Gonçalves, autor do Homem a Dias, considera que “na grande maioria dos casos, a generalidade da opinião pública europeia não é ‘pró-palestiniana’ em função dos factos (que de resto ignora), mas do discurso ideológico que impede toda a discussão. Há uma abundância de lugares-comuns, que se tomam por inquestionáveis - os refugiados, a anexação, agora o muro dito ‘da vergonha’ . Não há muita vontade em tentar perceber seja o que for”.

Para Ana Albergaria “é um facto que, na blogosfera portuguesa, são os blogs ligados à esquerda , grosso modo, que se insurgem mais contra Israel e, de uma forma desonesta, englobam todos os judeus. Estou totalmente convencida que mais do que serem anti-Palestina, são anti-Israel. E não me convencem os argumentos que utilizam sobre direitos humanos, porque quando as desumanidades são praticadas sobre judeus, nomeadamente com atentados ou ataques anti-semitas, essas acções são desvalorizadas e até justificadas. Têm dois pesos e duas medidas e isso é desonesto”.
Ana Albergaria prossegue: “Depois há também a questão da Europa vs EUA, e como o anti-americanismo está na moda, se os EUA defendem Israel, a Europa tende a defender a Palestina. Pode parecer palerma, mas é umas das razões. No entanto , e apesar da nossa esquerda portuguesa ser claramente anti-Israel, o maior perigo, na Europa em geral, continua a ser os movimentos de extrema-direita”.

Nuno Guerreiro aponta baterias aos meios de informação por darem de Israel a imagem de “má da fita”: “Muita da culpa passa pelos media e pelo tratamento desigual que é dado ao conflito. Há vítimas boas e vítimas más e as vítimas israelitas tendem a cair sempre do lado errado desta equação. A desinformação, o jornalismo vesgo e mal amanhado com que por vezes somos obrigados a enquadrar a nossa visão do que se passa naquela parte do mundo, é o maior culpado.

Madonna e a Cabala
Há oito anos Madonna começou a estudar a Cabala, uma corrente mística da religião judaica, um movimento voltado para a divulgação da sabedoria milenar.
A cantora, que brevemente actua em Portugal, não é a única celebridade a dedicar-se ao estudo da Cabala. Mick Jagger, vocalista dos Rolling Stones é outro estudioso atento desta disciplina baseada nos ensinamentos do Livro do Zohar, escrito há dois mil anos.
Outros artistas famosos estão a seguir-lhes os passos: Britney Spears procurar encontrar na Cabala o equilíbrio perdido após uma depressão; Demi Moore, Winona Ryder, Mick Jagger e Barbra Streisand são outros dos nomes apontados, afirmando terem encontrado algumas respostas para as eternas questões da existência.
O Livro do Zohar é uma interpretação do manuscrito cabalístico mais antigo, o Livro da Formação, da autoria do patriarca bíblico Abraão.

A Cabala ensina que não há coincidências e tudo o que acontece a uma pessoa foi causado por acontecimentos anteriores nesta vida ou numa anterior.
A Cabala é um antigo ensinamento judaico que, durante séculos foi transmitido oralmente aos sábios e era estudado por uma elite. Hoje em dia, estes ensinamentos podem ser estudados por quem o deseje, independentemente da seu credo ou religião.

13.1.05

 

O Discurso do Método

Por LUÍS FERNANDES
Quarta-feira, 05 de Janeiro de 2005

"Entraste bem o ano?", perguntam-me insistentemente desde há quatro dias. "Entrei, entrei", respondo automaticamente desde há quatro dias. Conversa oca? Enganam-se. A maior parte das coisas que dizemos na vida ordinária são deste teor: não perguntam nada, não respondem a nada. E nem por isso são coisa nenhuma - confirmam a regularidade das relações interpessoais, sem a qual o mundo social se desmoronava. São rituais interactivos que confirmam a ordem social e nos fazem saber que o outro é quem achamos que é, e que nós somos quem somos.


A quebra destas rotinas teria um efeito drástico na ordem quotidiana e a sua multiplicação implicaria a desordem generalizada. O simples acto de falar seria ameaçador. Imaginemos alguém que nos dá o lugar no autocarro. Responderemos "obrigado". "Obrigado a quê? Só se senta se quiser. Malcriado!", respondem-nos. "Se quiser não. Se puder. Se pudesse já me tinha sentado!", etc. Há um género de pessoas, neuróticos minúsculos, doentes disfarçados, que passam o tempo a fazer trocadilhos destes com aquilo que dizemos. Eis uns daqueles que não queria encontrar em 2005. Esta modalidade inquinada de comunicação está muito presente na classe política. Classe política, eis também algo que importaria eliminar em 2005. Refiro-me à classe, apenas. Dantes, os mais proeminentes políticos lutavam por uma sociedade sem classes, agora são eles próprios uma classe. Mas uma classe em erosão, uma classe cada vez com menos classe.


Retomemos as frases rituais, as tais que parecem não dizer nada. Quando somos novos, detestamos este género de comunicação. Pensamos que é inútil e confundimo-lo com a hipocrisia: afinal, o nosso interlocutor quer lá saber se entrámos bem o ano! E depois, o que é entrar bem o ano? Ou simplesmente entrar o ano, bem ou mal? Pois bem: à medida que tenho, como toda a gente, vindo a envelhecer - sim, como toda, mas mesmo toda, a gente - vou dando mais valor a este género de diálogos. Desisti das grandes ideias. Deixei-as lá atrás, no tempo em que achava ridículo entrar bem o ano. Afinal, para que me serviram? A que píncaros me conduziram, a que perfeição, a que belo? Que podem elas à beira do bacalhau do Natal? Gostaria de poder dizer que os meus desejos para 2005 se pautam por grandes ideias - mas sei já como isso é inútil.


E se começássemos por tentar antes resolver coisas simples, dessas em que ninguém pára para pensar? Seria um 2005 melhor? É que responder às pequenas questões que parecem sem importância cria um método de raciocínio que podemos depois ir transferindo sucessivamente para questões mais complexas. Exemplos: por que é que em jovens todos dizemos que não nos casamos e depois (quase) todos nos casamos? Por que é que os automóveis andam a 200 à hora se o limite de velocidade é muito mais baixo e toda a gente sabe que o excesso de velocidade é a principal causa da sinistralidade? O que é o défice abaixo dos três por cento? Por que é que todos fingimos perceber as notícias que falam disso? Como é que há gente que quer ser toureiro?


Responder a estas questões tem muito mais utilidade prática do que saber se as categorias kantianas ainda podem servir de pressupostos para não sei o quê (não sei mesmo) ou se a antítese do ser pode estar contida na antimatéria. Responder às questões simples cria método, responder às grandes cria confusão. E de método é do que andamos precisados: de disciplinar o pensar, de o tornar límpido. Um exemplo clássico da falta de método: "O Sporting é favorito para o clássico?", pergunta o jornalista; "Num clássico nunca há favoritos. Mas é claro, jogamos em casa, temos obrigação de ganhar...". Ou então este: "Afinal, porque é que és contra a co-incineração?"; "Hum, ó... ó pá, está-se mesmo a ver!"; "E a favor da queda do Governo?"; "Hum, ó... ó pá, porque tem de ser!" Eu também odeio o Manel. Tem de ser e está-se mesmo a ver. Perante este cenário, omnipresente e repetido e multiplicado em eco, que importância tem João Pinto ter dito um dia que só fazia prognósticos depois do jogo? É mesmo gostarmos de nos rir dos outros.


Por falar em rir, há um ano desejava, nesta mesma coluna, que em 2004 os portugueses perdessem aquela postura pesada do fado, aquele pessimismo inveterado, aquela tendência para o cinzentismo e ganhassem a capacidade de se rir. Objectivo cumprido: acabámos 2004 todos à gargalhada com essa excelente rapaziada de Santana Lopes. Só o Presidente é que não achou piada nenhuma. Este ano também promete ser animado: Paulo Portas, depois do curso acelerado em máquinas de guerra, voltará como um torpedo à oposição, onde é muito mais interventivo e animado. É justo reconhecer-lhe, por sob aquele estilo furioso, um grande sentido de humor. Estamos, pois, definitivamente, a tornar-nos um povo alegre e descontraído. Falta agora o método. O tal, o que nos poria a raciocinar melhor, a destrinçar o acessório do essencial, a não dar ouvidos a traficantes de ideias, de receitas, de soluções.


Desenvolver o método não consiste em melhorar o nível do discurso, em torná-lo mais fluente, mais rápido, menos balbuciante, mais adjectivado. Esta é precisamente a armadilha. E é uma arma comum aos sedutores, aos charlatães e aos mentirosos - categorias, aliás, muito pouco mutuamente exclusivas. É claro que todos nós estamos já a pensar em alguém, mas não vou abrir o ano com deselegâncias. O rigor do método começa com a capacidade de escuta, quer dizer, com algo que só na aparência é simples: ouvir o que o interlocutor disse, e não aquilo que lhe queremos atribuir. E ouvirmo-lo à luz do que diz, e não à luz do que nós pensamos. Isto implica a arte da empatia, e porque é uma arte não está ao alcance imediato e tem de ser cultivada. Num ano que vai ser, por causa dos actos eleitorais, marcado pelo debate, pelas lutas verbais, pelos confrontos de argumentos, melhor era que em vez dos gabinetes de imagem se montassem oficinas de comunicação. A ver se finalmente nos entendíamos...


Também gostava que em 2005 desaparecesse a televisão, a pública e a privada, que desaparecesse mesmo o televisor. A sua insidiosa pressão sobre os nossos órgãos dos sentidos vai anestesiando o pensar, hipnotizando o sentido crítico, reptilizando o raciocínio. O televisómano torna-se um poltrão, no sentido literal de sentado na poltrona, olhando bovinamente aquele quadradito de imagens velozes. Como podemos depois ter cidadãos sadios? A televisão é um aparelho contra o método. Também gostava que acabassem os telemóveis e os espremedores eléctricos, mas praticamente ninguém está de acordo comigo.

professor universitário

12.1.05

 

Católica e INTELI Adaptam Licenças Creative Commons a Portugal

Por REVOLUÇÃO DIGITAL NOS DIREITOS DE AUTO
Segunda-feira, 10 de Janeiro de 2005

Por oposição ao "Copyright", que protege todas as produções intelectuais no momento em que surgem, as licenças CC permitem a terceiros recriar obras originais facilitando a difusão de produções criativas, promovendo a utilização do conhecimento e facilitando o processo de inovaçã

Pedro Oliveira*

Há pouco mais de um século os irmãos Wright concretizaram, numa ventosa praia da Carolina do Norte, uma das mais antigas aspirações humanas: voar! A importância daquele momento dispensa justificações. O que é menos sabido é que o advento da aviação levantou, de imediato, algumas questões jurídicas. De acordo com a lei americana da época, o proprietário de um terreno era também dono de tudo o que estava acima e abaixo desse terreno, desde o centro do globo terrestre até ao "céu". A lei não especificava onde, no infinito, terminava esse direito de propriedade. Este absurdo enquadramento legal levantou um conjunto de problemas associados aos direitos do "ar". O proprietário de um terreno tem o direito de impedir que aviões sobrevoem o "seu" espaço aéreo? O proprietário pode negociar com uma companhia área, ou entidade militar, o acesso exclusivo ao "seu" espaço aéreo? Onde termina o seu direito de propriedade? Inclui as estrelas?

O desajustamento legal criado pelo aparecimento da aviação originou alguns processos judiciais, bem ao jeito dos americanos. Alguns agricultores da época queixavam-se de que as suas galinhas eram vítimas dos voos militares que sobrevoavam as suas propriedades a baixa altitude, argumentando que, as mesmas, sucumbiam aterrorizadas pelo susto. Em 1945 o Supremo Tribunal ouviu o caso do agricultor Tinie Causby, que se tornou um marco da história do direito americano porque esteve na origem do decreto, pelo Congresso, de que o céu é uma "auto-estrada pública". O bom senso foi tornado lei por decreto.

O impacte do desenvolvimento da aviação no direito de propriedade pode, em certa medida, ser comparado ao que está actualmente a suceder na Internet. Lawrence Lessig, um conhecido autor e professor da Universidade de Stanford, usa esta comparação no seu recente livro "Free Culture" (The Penguin Press, 2004), que analisa o impacto da Internet, muito para além da própria Internet. Lessig mostra como algumas das grandes criações foram derivadas de trabalhos anteriores. Beethoven escreveu variações de obras de Anton Diabelli, bem como, re-escreveu Rule Britannia de Thomas Arne. Monet pintou a Gare St Lazare, desenhada originalmente por Engène Flachat. O filme da Disney, Kim (1950) foi baseado numa novela de Rudyard Kipling (1901), um ano depois de terem caducado os direitos de autor. Shakespeare construiu a sua obra usando como "alicerces" o trabalho de outros criadores. Ainda bem que tal foi possível!

Como funcionam as licenças...

A Internet possibilita que mais indivíduos participem no processo de criação cultural com potencial impacto global. Estão hoje disponíveis "on-line" uma quantidade infindável de conteúdos prontos a serem usados, sem que no entanto o possam ser sem autorização explícita dos autores. Com a crescente digitalização dos conteúdos e acesso fácil a meios de distribuição (a "auto-estrada da informação") basta um simples cortar-e-colar para que uma obra original seja reproduzida na integra, muitas vezes de modo abusivo.

No entanto, mesmo em circunstâncias em que os criadores de conteúdos estão interessados em ceder livremente essa informação, não existia, até há muito pouco tempo, um mecanismo ou enquadramento legal, que facilitasse a utilização da informação, sem recurso a intermediários. No caso da Internet, e ao contrário do que se passou em relação ao espaço aéreo, não seria sensato decretar que todos os conteúdos da Internet passassem a ser bens públicos.

Para tentar solucionar esta questão foi lançado em 2001, por iniciativa de Lessig, o projecto Creative Commons (CC), que visava abranger um conjunto de bens culturais sob uma licença jurídica que permita a livre circulação e a recriação das obras. O objectivo é expandir a quantidade de obras disponíveis, permitindo criar outras com base em originais. Isso foi feito através do desenvolvimento de licenças que permitem regular o acesso às obras sob condições mais flexíveis, dispensando a necessidade de intermediários. A iniciativa resultou nas licenças CC que permitem proteger os direitos dos autores interessados em distribuir as suas obras livremente, ou restringir apenas em parte o seu uso por terceiros. O objectivo é promover a existência de bens criativos acessíveis a todos. Por oposição ao "Copyright", que protege todas as produções intelectuais no momento em que surgem, as licenças CC permitem aos criadores autorizar de forma simples o uso das suas obras por terceiros, nomeadamente indicando nas "webpages" os termos da licença, evitando as burocracias inerentes às licenças de direitos de autor, dispensando o envolvimento de advogados, ou qualquer contacto entre o autor e o utilizador dessas produções. Existem diversas modalidades de licença, cada uma concedendo direitos e deveres específicos (ver texto sobre White Stripes).

... que já cativaram universidades, escritores e a BBC

Universidades como o MIT ou Rice aderiram já a esta filosofia e disponibilizam os conteúdos dos seus cursos "on-line", com autorização para serem usados, traduzidos, ou alterados. Escritores, como Cory Doctorow, ou o próprio Lessig, disponibilizam os seus livros na "net" para serem lidos sem custo. Nos EUA o número de licenças continua a crescer exponencialmente tendo já ultrapassado os três milhões. Entretanto as licenças CC começaram a ser traduzidos e a chegar a países com diferentes enquadramentos jurídicos. A BBC anunciou que vai aderir às licenças CC e disponibilizar os seus artigos e gravações livremente. No Brasil o músico (e actual Ministro da Cultura) Gilberto Gil utiliza as licenças, permitindo que parte das suas criações musicais sejam usadas, misturadas ou alteradas por terceiros.

Um conjunto de iniciativas paralelas tenta extrapolar o benefício da utilização das licenças CC para outros domínios. Os "Science Commons", por exemplo, visam encorajar a inovação científica através do acesso de cientistas, universidades e diferentes industrias a literatura, dados, e propriedade intelectual, e à sua partilha com outros. Com o desenvolvimento das tecnologias que permitem a recolha e armazenamento de informação, um conjunto de áreas científicas (da meteorologia à genética, passando pela física de alta energia) estão a tornar-se crescentemente dependente de bases de dados públicas e privadas, e da facilidade de acesso e manipulação desses dados.

Sendo o acesso e controlo de informação um activo de importância crescente, as licenças CC podem contribuir significativamente para facilitar a difusão de produções criativas tornando-as disponíveis a terceiros, promover a utilização do conhecimento, e facilitar o processo de inovação. A adequação do enquadramento legal aos novos paradigmas tecnológicos é um factor competitividade, e Portugal deve acompanhar essas tendências. A Faculdade de Ciências Económicas e Empresariais da Universidade Católica Portuguesa (FCEE-UCP), em parceria com a INTELI, está a liderar a adaptação das licenças CC a Portugal, as quais deverão em 2005 ficar acessíveis em português para poderem ser utilizadas por criadores nacionais. As licenças Creative Commons já estão disponíveis nos seguintes países: Alemanha, Áustria, Bélgica, Brasil, Canadám, Espanha, EUA, Finlândia, França, Holanda, Japão e Taiwan.

* Professor Auxiliar da Faculdade de Ciências Económicas e Empresariais da Universidade Católica Portuguesa

Colaboração INTELI - Inteligência em Inovação

6.1.05

 

Propinas financiam projectos da Universidade

O Senado da Universidade aprovou vários projectos que serão financiados pelo Fundo do Investimento, resultante das receitas das propinas.
Quase cinco milhões de euros - provenientes das propinas pagas pelos estudantes - vão servir para financiar uma série de projectos aprovados ontem durante a reunião do Senado da Universidade de Coimbra (UC). O reitor Seabra Santos frisou, porém, que vai cumprir com o que prometeu, ao gastar o dinheiro das propinas para “aumentar a atractividade e a qualidade” da instituição, rejeitando a ideia de que esse montante sirva para fazer face às despesas correntes.
Assim, durante a reunião do Senado, foi aprovado um vasto rol de iniciativas que vão ser financiadas pelo Fundo do Investimento.
Recorde–se, no entanto, que neste âmbito já haviam sido aprovados quatro projectos. “O Fundo de Apoio Social (FAS), dotado com um total de 500 mil euros, já está em execução, prevendo–se que venham ser abrangidos 1.200 estudantes com bolsas de estudo”, disse ao DIÁRIO AS BEIRAS, Seabra Santos.
Um outro projecto foi a redução da propina máxima para a propina mínima para os segundos e terceiros membros dos mesmo agregado familiar. Aprovou–se ainda a redução do montante para a propina mínima para os trabalhadores da UC que simultaneamente são estudantes de licenciatura, além da atribuição de bolsas de estudo a três por cento dos melhores alunos da instituição.

Projectos aprovados
Ontem, foi deliberada a atribuição de 100 bolsas de mobilidade no âmbito do programa Sócrates/Erasmus permitindo, segundo o reitor, que a UC mantenha uma posição de “liderança nacional em matéria de internacionalização do corpo discente”. O senado aprovou ainda projectos pioneiros de certificação pedagógica das licenciaturas de Matemática, Engenharia Informática, Economia e História. “Será uma experiência piloto que nos permitirá adquirir conhecimentos e experiência e que se espera que, no futuro, possa ser alargado às outras licenciaturas da UC”, salientou.
Incentivos à formação desportiva aos estudantes da UC e à edição de manuais didácticos e de investigação científica, através da Imprensa da UC, e um projecto de empregabilidade, que vai ser financiado pela universidade através do Fundo de Investimento e pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional (prevendo a criação de um Centro de Emprego para licenciados a funcionar em Coimbra, nas proximidades da AAC), foram outros pontos que obtiveram a maioria dos votos dos senadores.
Na área da investigação científica, a UC vai atribuir 10 bolsas de doutoramento por ano e disponibilizar uma verba destinada a incentivar programas de investigação que envolvam estudantes de licenciatura dos últimos anos.
O dinheiro das propinas, “arrecadado” no Fundo de Investimento, vai servir ainda para a construção e reabilitação de alguns imóveis. Estão assim previstas a construção do Colégio da Trindade, do Teatro Paulo Quintela, a reconstrução do Museu de Arte Sacra, da Casa das Caldeiras, a conclusão do “Edifício do Patronato” e a construção de uma pequena residência junto ao Observatório Astronómico. Parte da verba será ainda destinada a apoiar a candidatura da UC a Património da Humanidade.
Em declarações ao DIÁRIO AS BEIRAS, Seabra Santos disse que todos os projectos previstos representam um investimento de 4,7 milhões por ano, verba resultante, na sua totalidade, das propinas pagas pelos estudantes da universidade.

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