Textos da Internet
22.9.04
By THE ASSOCIATED PRESS
Filed at 1:09 p.m. ET
LOS ANGELES (AP) -- Russ Meyer, producer-director who helped spawn the ``skin flick'' with such films as ``Faster, Pussycat! Kill! Kill!'' and later gained a measure of critical respect, has died. He was 82.
Meyer died Saturday at his home in the Hollywood Hills, according to his company, RM Films International Inc. Spokeswoman Janice Cowart said Meyer had suffered from dementia and died of complications of pneumonia.
Meyer's films were considered pornographic in their time but are less shocking by today's standards, with their focus on violence and large-busted women but little graphic sex.
Altogether he produced, directed, financed, wrote, edited and shot at least 23 films, including his debut, ``The Immoral Mr. Teas,'' in 1959 and the 1968 film ``Vixen,'' whose success earned him notice from major studios.
He went on to direct the major studio release ``Beyond the Valley of the Dolls'', which was co-written by film critic Roger Ebert.
In a 1996 interview with The Associated Press, Meyer described his films as ``passion plays ... beauty against something that's totally evil.''
Meyer was unapologetic for his movies, arguing the onscreen female nudity put customers in theater seats. But he maintained that women liked the films.
``The girls kick the hell out of the guys. I've always played well at the Ivy League -- Cornell, Dartmouth. I have never encountered a berating woman,'' he said.
Meyer's work made him rich and earned him acclaim. He was honored at international film festivals and his movies were discussed in college courses. Even critics who disliked his movies often found something positive to note.
New York critic John Simon derided ``Beyond the Valley of the Dolls'' as ``awful, stupid and preposterous'' but said the film was ``also weirdly funny and a real curio, rather like a Grandma Moses illustration for a work by the Marquis de Sade,'' according to Halliwell's Film and Video Guide.
His 1966 film ``Faster Pussycat, Kill! Kill!,'' about three go-go girl club dancers who go on a vengeful murder spree against the men who did them wrong, still makes the art house rounds.
``This film is not derogatory to women,'' Meyer said. ``There were three tough cookies to deal with. Besides, they get what's coming.''
``Stag films were the earliest version of pornographic movies, but then they got hard-core, and I didn't,'' he told the AP. ``Mine are put-ons, send-ups, humorous. I think I've got an ability to provoke, be teasing, be provocative.
``It's all a joke.''
Born in Oakland, Meyer got his start in film as a young boy when his mother bought him an 8 mm camera. As an adult, he made training films with the Army Signal Corps in World War II and then shot newsreels in France and Germany. He made industrial films for Standard Oil and lumber companies before making his own films.
Meyer was married three times, including to actress Edy Williams. His studio said he left no survivors.
20.9.04
O escritor angolano José Eduardo Agualusa critica o racismo brasileiro e a incapacidade das elites em entender o país
LUÍS ANTÔNIO GIRON
José Eduardo Agualusa virou um escritor em moda no Brasil. O visual de galã de novela e principalmente os romances leves e povoados de aventuras converteram esse angolano de 43 anos (e aparência de 25) em figura popular no meio cultural. O compositor Caetano Veloso foi um dos primeiros a chamar a atenção do público para as idéias de Agualusa sobre a questão negra e o papel que o Brasil ocupa em relação às antigas colônias portuguesas e à velha metrópole, Lisboa: o de síntese entre África e Europa. Em seus livros - cinco romances já foram lançados por aqui -, ele propõe uma conexão entre os três continentes que foge à atenção dos próprios brasileiros. Os personagens em constante movimento refletem a situação do autor, que mora entre Lisboa e Luanda, tem parentes em São Paulo e já viveu no Recife e no Rio de Janeiro, entre 1998 e 2000. Os deslocamentos lhe propiciaram desenvolver um estilo peculiar, que mistura brasileirismos e a gíria urbana de Luanda de forma enxuta e clara.
Escritor profissional e colaborador de jornais em Lisboa e Luanda, Agualusa orgulha-se de se autodenominar afro-luso-brasileiro. Ele não apenas adora o Brasil, como tem no país uma das fontes mais poderosas de suas histórias. Retornou ao Brasil na semana passada, para lançar seu mais recente livro, O Vendedor de Passados (Gryphus, 200 páginas, R$ 32), sobre um especialista em reescrever a biografia dos fregueses na emergente sociedade urbana de Angola. Nesta entrevista a ÉPOCA, Agualusa afirma que o Brasil, apesar de cordial, ainda é um país colonizado e racista, critica a obra do português José Saramago, por considerá-la niilista, e revela o segredo de seu método de escrever.
José Eduardo Agualusa
ÉPOCA - No romance O Ano em Que Zumbi Tomou o Rio, você faz um retrato aterrador dos morros cariocas, dominados por traficantes de drogas e sob a liderança de um revolucionário angolano. Este personagem afirma que o Brasil ainda não se descolonizou, ao contrário de Angola. Você concorda com ele?
José Eduardo Agualusa - É a minha opinião. O Brasil ainda é um país moldado na escravatura, igual à África. O Brasil tem uma África dentro de si e às vezes não lhe dá atenção. Aqui, como em Angola, por exemplo, existe a figura da babá negra que passa de geração em geração; há o moleque criado como se fosse filho, mas, na verdade, ele trabalha na casa, sem remuneração. Negro e pobre são condições que se confundem no Brasil. Não se criou aqui, como em Angola, uma elite negra. A gente repara nessa desigualdade no dia-a-dia, na relação entre as pessoas, e até mesmo na cultura. Atualmente não dá para citar um grande escritor negro ou mestiço brasileiro. Isso é incrível porque no século XIX havia grandes escritores afro-descendentes, como Machado de Assis e Cruz e Sousa. Pior ainda, não há um único grande autor indígena - algo que acontece em toda a América. Enquanto não enfrentar o problema e não der maior participação aos negros, o Brasil não terá se descolonizado. O Brasil é colônia.
ÉPOCA - Você considera os brasileiros racistas?
Agualusa - Aqui existe o racismo, mas não a paranóia racial, como acontece nos Estados Unidos ou mesmo em Angola. Nesses dois países, sempre pensamos no assunto o tempo todo. Por exemplo, se em Angola organizamos uma antologia de poetas contemporâneos, obrigatoriamente pensamos em quantos negros vão participar. Aqui, não se presta tanta atenção à cor e nem acho que haveria autores negros suficientes para figurar em uma antologia. Gilberto Gil virou ministro da Cultura não porque é negro, mas por ser uma figura importante. Em Angola ou nos Estados Unidos, uma escritora como Clarice Lispector, infelizmente, não seria considerada nacional, mas ucraniana.
ÉPOCA - Por que você é tão fascinado pelo Brasil?
Agualusa - Busco no Brasil aquilo que ele tem de africano. Não me reconheço no Sul, e sim do Rio para cima e nos sertões. A ligação com o país começou com a minha própria família. Meu avô era carioca, e venho para cá regularmente há 15 anos. Sempre ouvi música e li escritores do Brasil. Caetano, Chico Buarque e Rubem Fonseca me fizeram entender o país com maior profundidade. Conheço mais o Brasil do que muitos brasileiros. O povo é alegre e isso se deve muito à influência africana. A África evitou que os brasileiros se contaminassem pela melancolia portuguesa. O Brasil tem um pé na África e o outro na Europa. É a súmula dos dois mundos. Pena que muitos brasileiros não tenham descoberto esse fato. O pior do Brasil são suas elites. Elas desprezam tudo o que é brasileiro e popular.
ÉPOCA - E o que é genuinamente brasileiro que não se encontra em outros lugares do mundo?
Agualusa - Os brasileiros são um povo nacionalista sem ser xenófobo. As pessoas querem que você vire brasileiro. Às vezes, é como se eu tivesse de esquecer que sou angolano para virar brasileiro. É um país com grande força de integração. O brasileiro gosta de ser brasileiro.
ÉPOCA - Como você vê a situação política do Brasil hoje?
Agualusa - Sei que muita gente se decepcionou com Lula porque ele mudou de discurso. Mas quem chega ao poder precisa mesmo alterar a postura e ignorar as declarações que fez quando estava na oposição. É natural e acontece em todo o mundo. Considero Lula um grande estadista, com enorme prestígio internacional. Ele tem de negociar com as elites e está fazendo um ótimo trabalho. Da mesma forma, Fernando Henrique Cardoso foi um ótimo presidente. Prova disso é que a situação melhorou muito no Brasil nos últimos 15 anos. Quando vou para o interior, noto que o analfabetismo diminuiu e há muita gente culta em lugares que não são Rio ou São Paulo. As ONGs estão fazendo um trabalho extraordinário nas comunidades carentes e a evolução dos brasileiros é visível para alguém que, como eu, acompanha os acontecimentos de fora.
ÉPOCA - Como está o país em termos musicais?
Agualusa - A música popular brasileira é uma fonte inesgotável de surpresas. Quando a gente pensa que ela secou, aparecem novos talentos. Pena que os brasileiros só consumam o pop americano e não ouçam mais a música africana, que está em grande fase. Os brasileiros só conheceram Cesaria Evora depois que ela fez sucesso nos Estados Unidos. Em Lisboa, produzo um programa de rádio de pop africano e percebo uma grande renovação sonora originária da África - e que entra muito lentamente no Brasil. Aos poucos, vemos isso acontecer. Em seu CD mais recente, Fernanda Abreu canta uma música angolana. E acontecem parcerias aqui e ali.
ÉPOCA - Você tem contato com a literatura brasileira?
Agualusa - Há boa movimentação no mercado, como o surgimento de muitos escritores, mas no plano internacional a literatura brasileira ainda não tem a importância da música. O Brasil já produziu grandes escritores, como Guimarães Rosa, Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro. Os dois últimos para mim são africanos e influenciam os autores da África.
ÉPOCA - A literatura de expressão portuguesa vive uma fase boa?
Agualusa - Em Angola, já produzimos melhor música e melhor literatura. A cultura depende sempre da situação econômica. Angola tem jazidas de diamantes e é um dos maiores produtores de petróleo do mundo. Mas vivemos um resquício do antigo regime comunista (1975-1992), durante o qual até as barbearias foram estatizadas e os melhores músicos simplesmente fuzilados. Em Luanda, você encontra ainda ruas com nome de dirigentes comunistas e até hoje funciona o Cine Karl Marx. Por preguiça, as pessoas não querem mudar nem os símbolos nacionais, embora exista uma nova bandeira já definida. Angola foi descolonizada recentemente. Saiu de uma guerra terrível entre comunistas apoiados por Moscou e maoístas financiados pelos Estados Unidos. Nesse sentido, o Brasil tem sorte porque é um dos poucos países do mundo que não passaram por guerras, a não ser a do Paraguai e a de Canudos, que são ridículas perto de grandes confrontos. A gente sente isso no comportamento do povo e na cultura. Aqui existe de fato o homem cordial. Num ambiente como o angolano, onde não há quase editoras, é muito difícil a cultura florescer. No entanto, temos bons escritores em Angola e Moçambique. O moçambicano Mia Couto, para citar um amigo, está fazendo bons livros. Ele declara a influência de Luandino Vieira, que, por sua vez, afirma que se inspirou em Guimarães Rosa para recriar a língua portuguesa a partir da linguagem dos favelados de Luanda.
ÉPOCA - E os autores portugueses?
Agualusa - São todos terrivelmente melancólicos. Não há personagem de autor português que não se suicide no final. Os portugueses parecem alguns autores paulistas atuais, soturnos e pessimistas. E há aqueles que não escondem a nostalgia do império e inventam um herói, sempre português, que percorre a África e a América, em geral povoadas por coadjuvantes sem importância. Ultimamente, porém, tenho lido autores jovens - Francisco José Viegas e Pedro Rosa Mendes - que já conseguem olhar para as antigas colônias com olhos menos colonialistas. O maior escritor lusitano da atualidade chama-se António Lobo Antunes. Ele é difícil em sua linguagem cheia de metáforas, é mesmo exagerado e sombrio, mas, no meio de extensas zonas de sombra, encontram-se golpes luminosos. Só que há poucos portugueses com humor depois de Eça de Queirós.
ÉPOCA - Por falar nisso, você não citou o Nobel José Saramago. O que você acha dele?
Agualusa - Ele pode ser um grande escritor. Memorial do Convento é um excelente romance. Mas não gosto dele. Saramago cultiva o niilismo. É um pessimista que não acredita na vida e seus livros são contaminados pelo desencanto. É difícil escrever quando se descrê completamente da vida. Um grande romance deve ser feito com raciocínio, mas também com paixão, as vísceras e o coração. Em seu último livro, Ensaio sobre a Lucidez, Saramago faz a defesa do voto em branco, o que é ridículo, pois ele se candidatou como deputado pelo Partido Comunista. José Saramago é vítima da própria descrença. É um velho.
ÉPOCA - Você se distingue dos autores portugueses e luso-africanos pelo estilo simples. Como você chegou a seu modo de escrever?
Agualusa - O mínimo que devo ao leitor é ser claro e lhe facilitar a vida. Sempre busquei um estilo que fosse acessível a todo o mundo de fala portuguesa. Beneficiei-me de um fato:o vocabulário da juventude portuguesa se africanizou e hoje é contaminado pela gíria angolana. Outro dia eu estava no metrô e vi os jovens brancos falando ''bué'' (''muito'', em gíria de Luanda) e ''cota'' (''velho'', em quimbundo). Está mais fácil se comunicar com eles. Quanto ao Brasil, há muitas palavras em comum com o português angolano, como ''quitandeira'' e ''baderna''. Comecei a escrever aos 20 anos, quando eu cursava Agronomia e Silvicultura (felizmente não concluí nenhum dos cursos). Eu usava as vozes de outros autores, como Eça de Queirós e Jorge Luis Borges. Ganhei voz própria escrevendo, caminhando. Tenho o maior trabalho para dizer coisas complexas da forma mais simples e fazer o texto fluir.
ÉPOCA - Que outros escritores marcaram você?
Agualusa - Rubem Fonseca, Gabriel García Marquez e, claro, Bruce Chatwin.
ÉPOCA - Viajar é sua maior fonte de inspiração?
Agualusa - Sim. Por muitos anos, eu só tive endereço fixo na internet. A rede de computadores facilitou a vida, a gente pode baixar sons e imagens e ter a experiência de uma cultura em um país distante. Em Berlim, em 2001, escrevi O Ano em Que Zumbi Tomou o Rio. Eu pegava o calão dos morros cariocas pela internet. Mesmo assim, há coisas que são únicas em viagens, como os cheiros, as sensações. Viajar ainda é a melhor maneira de um escritor se inspirar.
ÉPOCA - Por que você escreve?
Agualusa - Para elaborar um romance, é necessário algum planejamento, e tomo muitas notas à mão ao viajar. Ainda assim, quando começo a escrever, no laptop ou no computador, não sei qual será o fim do enredo. Ao longo do livro, sou conduzido pelos personagens. Sou surpreendido da mesma maneira que o leitor. Escrevo porque quero saber o final das histórias
14.9.04
By Tom Rosenstiel
Sunday, September 12, 2004; Page B07
Regardless of who wins the election, the campaign of 2004 has already made history. For the first time, a cable news channel -- Fox -- attracted more viewers than a broadcast network when they were competing head to head, covering the Republican National Convention.
Was this a watershed for a new partisan journalism in America? I think the real meaning is something else.
What happened this summer, and particularly last week, is likely to be recalled as the end of the era of network news. At the very least, mark this as the moment when the networks abdicated their authority with the American public.
Should we care? Consider: The rise of network television news was arguably the most important development in American politics in the latter half of the 20th century. The arrival of news divisions in the 1950s and '60s meant that for the first time citizens could regularly see events for themselves.
Within a remarkably short time, nearly everything about the way we elected our leaders changed. Presidential primaries became the means of nomination. Parties were weakened. Conventions became communications rather than decision-making events. The smoke-filled room all but disappeared.
We began to respond to different qualities in our leaders. Personal characteristics began to transcend resume. Policy, as James Carville notes, became a character issue. Party platforms were just pieces of paper. With the old ways of vetting candidates gone, the public started demanding that the press provide more personal information about its political leaders -- not excluding their sex lives. Some say that the kind of people we elected changed.
The rise of the networks also helped raise the media to a position of unprecedented prestige. By the late 1960s, an anchorman, Walter Cronkite, was the most trusted man in America. Watching Cronkite, just back from Vietnam in 1968, declare the war unwinnable, President Johnson turned to an aide and said that if "we have lost Walter, we have lost the country." A few weeks later, a majority of Americans polled were in opposition to the war. Johnson declined to run for reelection.
Networks were consequential -- and serious in purpose. While newspaper people are loath to admit it, TV journalism at its best could tell stories more powerfully than print.
Now, with their decision to forgo any meaningful coverage of the conventions, the networks have signified -- despite whatever rhetoric they offer -- that the prestige and influence of their news divisions no longer matter much to them.
No wonder the public turned elsewhere. In effect, the networks' owners have altered their brands. They have signaled that they are now almost entirely economic institutions. Certain news programs may remain important, such as NBC's "Today" show, but only if they add to the bottom line.
The networks still air nightly newscasts that are often superb, and nearly 30 million Americans still watch. But the average age of their audience is close to 60, and now the network owners have done even more damage to these programs and the news divisions that produce them.
What difference will it make that the networks are ceding TV journalism to cable? Network news was built around the carefully written and edited story, produced by correspondents and vetted in advance to match words and pictures. On the network evening newscasts, 84 percent of the time is taken up by such packages, according to content analysis by the Project for Excellence in Journalism's annual State of the News Media study.
Cable news is a live and extemporaneous medium built around talk. Only 11 percent of the time is devoted to edited stories. Eighty percent is given over to in-studio interviews, studio banter, "anchor reads" and live reporter stand-ups, in which correspondents talk off the top of their heads or from hasty notes.
What is lost in the cable obsession with "live" is the chance to double-check, to rewrite, to edit -- and often to even report. What is lost with the passing of network TV, in other words, is the journalism of verification. It is gradually yielding place to a journalism of assertion.
There are subtler differences. Network journalism, built around visual storytelling, tends to take viewers to the events of the world outside. Cable news, built around talk-show hosts, tends to take viewers into the studio. In this new TV journalism, in a sense the news is secondary to the staged debate about the news.
Network journalism originally was designed not to make a profit but to create prestige. Cable is all about profit and keeping costs low. What is disappearing is an idealism about the potential of TV as a medium to better our politics and society.
After this summer, Americans will no longer see network news in quite the same way. The network owners may not fully understand this. Even if they do, there is little evidence that they care.
The writer is director of the Project for Excellence in Journalism.
11.9.04
10.9.04
Por POR SÉRGIO C. ANDRADE
Sexta-feira, 10 de Setembro de 2004
O 61.º Festival de Cinema de Veneza vai homenagear hoje à noite "a longa carreira e o contributo para o cinema" de Manoel de Oliveira com um Leão de Ouro - a mesma distinção vai ser atribuída ao norte-americano Stanley Donen (o autor do clássico "Serenata à Chuva", 1952), que, com Oliveira, segundo o festival italiano, deixaram "uma marca profunda no cinema do século XX" . Não é a primeira vez que o realizador português é premiado em Veneza. Já em 1985 ele tinha aí recebido um Leão de Ouro Especial, e, em 1991, com "A Divina Comédia", fora distinguido com o Prémio Especial do Júri e o Prémio Fipresci (crítica internacional). Em paralelo com a homenagem de hoje à noite, Oliveira fará a antestreia mundial do seu novo filme, "O Quinto Império - Ontem como Hoje", em que revisita o mito do Desejado e do Encoberto a partir da peça de José Régio "El-Rei Sebastião" (ver PÚBLICO de 1/9). Mais um episódio da consagração internacional do mais velho realizador vivo em actividade em todo o Mundo.
Manoel de Oliveira é, no estrangeiro, a imagem de marca do cinema português. Como é que lida com esta responsabilidade?
Nunca me considerei "persona" importante. Uma coisa sou eu, outra é o meu trabalho, e este depende dos autores, dos actores, da história, de tudo isso que eu respeito. Eu sinto a necessidade de fazer filmes...
Mas tem consciência de que é uma espécie de embaixador do cinema português?
[Quando eu comecei a fazer filmes] o cinema português estava parado. Não havia quem fizesse nada. Havia um tipo de filmes caseiros que tinham muito público, muita aceitação. Vinham da revista, do teatro, com actores conhecidos. Mas os meus filmes tinham um carácter mais universalista e espalhavam-se lá por fora. Graças a isso, pude continuar. O "Amor de Perdição" reabriu esse caminho - é engraçado que o "Amor de Perdição" da Invicta [realizado por Georges Pallu, em 1921] foi o primeiro filme português a ser exibido comercialmente nos EUA, em Nova Iorque, em 1924; e o segundo foi o meu "Amor de Perdição" [1978]. Eu tenho já um público próprio na América.
Sente que, ao longo da sua carreira, criou discípulos no cinema português?
Não são discípulos. Eu nunca fui modelo para ninguém, nem nunca procurei isso. Eu tive como assistente o Manuel Guimarães ["Aniki-Bobó", 1942], falávamos muito, e abri caminho para ele. Tive também o Paulo Rocha ["Acto da Primavera", 1962, e "A Caça", 1963]. Estive mesmo para produzir um filme dele, mas acabou por ser ele a fazê-lo. Ele admirava o meu cinema e eu gostava muito de falar com ele, porque me instruía; eram modos próximos e ao mesmo tempo diferentes, e isso ajudava-me à minha formação e à minha visão cinematográfica. Depois tive o António Reis ["Acto da Primavera"]. O João Canijo ["O Sapato de Cetim", 1985]...
Vê alguma linha de continuidade entre a sua obra e a desses realizadores?
Felizmente, não. Há uma linha de continuidade de raiz portuguesa, não minha. Felizmente. Não é fácil... Vou dar-lhe um exemplo da pintura: o Van Gogh. Não há nenhum outro Van Gogh. Não há nenhuma influência do Van Gogh, e se houvesse, isso era mau. Eu não fiz escola: não fiz neo-realismo, nem expressionismo, nem impressionismo, nem o Novo Cinema. Eu não fiz nada. Eu fui novo e diferente toda a vida, e assim serei. Portanto, ninguém é meu discípulo: eu não sou discípulo de ninguém. Sou filho de Portugal, tenho uma raiz portuguesa que é comum aos outros. É isso que nos pode ligar - essa raiz portuguesa, com uma visão mais optimista ou mais pessimista, mais alegre, mais realista, mais sombria... Mas isso é uma realização das diferentes "psicoses" de cada realizador, da sua formação, do seu sentimento, da sua espontaneidade. Eu gosto muito, por exemplo, dos filmes que fazia o António Reis, que eram muito característicos, muito pessoais. Ou, por exemplo, essa obra-prima que é "A Ilha dos Amores", do Paulo Rocha.
E das gerações mais novas?
O mais corajoso de todos é o que fez "No Quarto da Vanda" - o Pedro Costa. Ele faz aquilo que sente, e é autêntico. Não o faz para agradar a gregos nem a troianos. Faz aquilo porque sente necessidade de tocar aqueles assuntos sombrios. Ele é uma pessoa que tem uma visão mais pessimista, mas, ao mesmo tempo, toca realidades que não são especificamente portuguesas. São universais. O formato é que é português, porque se fosse o Straub, por exemplo, a tocar o mesmo tema, seria feito de outra maneira, com uma psíquica própria.
Quais são, na sua opinião, as marcas distintivas do cinema português?
São a autenticidade. Quando o realizador faz aquilo que realmente pensa e sente, independentemente de vir a agradar ou não ao público.
E como vê a geração mais jovem?
Ela tem-se manifestado de um modo interessante. Justamente, o cinema mais jovem é mais apreciado lá fora precisamente por essa diferença, por essa autenticidade. Não fazer um filme para agradar, mas porque é o filme que quero fazer.
Não acha que em certos realizadores mais jovens - Pedro Costa, Teresa Villaverde, João Pedro Rodrigues... - há uma marca muito sombria, que se distancia inclusivamente do seu cinema.?
Sim. Mas tratam de uma realidade universal terrível, que é o vício da droga, o vício do vinho, que faz do homem um farrapo - e isso é trágico. Mas isso não é uma coisa portuguesa, existe em todo o mundo.
Tem contactos com os jovens realizadores portugueses. Eles procuram-no?
Não. A única relação que tenho mais próxima é com o Pedro Costa, mas é muito pouco. Eu sinto, ou pressinto, que eles até nem querem ter nada a ver com o Manoel de Oliveira. Uma vez alguém dizia, quando veio cá o Godard, que tinha muita influência dele nos seus filmes. Então eu disse que o Godard era o Godard, e fazer como o Godard sem ser Godard é impossível. Cada um é como é. Cada um deve fazer o seu trabalho por si. Claro que há sempre influência, na formação intelectual. Mas o que eu reprovo na gente nova é quando ouço dizer que a Cinemateca se oferece para lhes mostrar filmes antigos e eles dizem que não querem. Isso reprovo, porque o cinema não nasceu com eles, já cá estava, e cada um dos realizadores foi mais uma folha na frondosa copa da árvore do cinema. Mas o que sustenta a árvore não são os ramos, são as raízes. E se tirarem as raízes, caem as folhas.
Por SÉRGIO C. ANDRADE
Sexta-feira, 10 de Setembro de 2004
Numa altura em que Manoel de Oliveira se vê uma vez mais projectado internacionalmente, em Veneza, não são unânimes as avaliações dos efeitos do prestígio do realizador de "O Quinto Império" na visibilidade do cinema português além e aquém-fronteiras.
Dos vários cineastas ouvidos pelo PÚBLICO, quase todos manifestam satisfação por mais este prémio para o mais notado dos realizadores nacionais. Mas as leituras dividem-se quanto às consequências intramuros dessa notoriedade, como quanto à importância que a obra de Oliveira tem no contexto do cinema português. Há vantagens óbvias, mas há também quem assinale inconvenientes.
"Se muito do cinema português tem a marca que tem, deve-o ao Manoel de Oliveira, não apenas pelo seu trabalho como cineasta nos últimos 15, 20 anos, mas desde sempre", diz Fernando Lopes. E acrescenta: "Tenho muito orgulho em afirmar-me cineasta português assumindo essa herança". Mas o realizador de "Uma Abelha na Chuva" também admite que um inconveniente dessa fama é ela "levar a confundir todo o cinema português com a obra de Oliveira".
Para Joaquim Leitão, "é indiscutível que Manoel de Oliveira marca um salto qualitativo na projecção internacional" do nosso cinema. Mas realça igualmente que esse reconhecimento existe "num quadro de algumas elites e nos meios da crítica e dos festivais", sendo, por isso, "algo redutor das diferentes expressões que caracterizam o cinema português".
João Pedro Rodrigues diz que Oliveira "criou uma imagem do cinema que não corresponde de todo à nossa cinematografia actual, que tem caminhos mais ou menos individuais, e sem grandes 'afinidades electivas'". No entanto, o realizador de "O Fantasma" considera Oliveira "um caso à parte - o primeiro e o maior desses caminhos".
Já João Mário Grilo começa por realçar que o prémio de Veneza significa, primeiro que tudo, "o reconhecimento do Autor e do cinema de autor" - facto que considera tanto mais importante quanto "vivemos uma época em que o paradigma do cinema é o dos Óscares". O realizador de "O Processo do Rei" acrescenta: "Manoel de Oliveira tem levado um bocado o cinema português a reboque, ele que nos ensinou a seguir linguagens e identidades próprias". E lembra a importância de filmes como "Acto da Primavera" e "Amor de Perdição" na instituição de "uma espécie de protocolo de liberdade" para a nossa cinematografia.
Opinião extremamente crítica sobre a obra do autor de "Non, ou a Vã Glória de Mandar" tem António-Pedro Vasconcelos: "A atenção que alguns festivais e meia dúzia de críticos dedicam a Manoel de Oliveira acabou por ser nefasta para todos nós. A França, que é quem continua a dar cartas nesta matéria, decidiu de uma vez por todas que o 'cinema português' é o Sr. Oliveira, e tudo o resto ou são discípulos, ou heresias".
Uma herança sem discípulos?
É igualmente diversa a forma como cada um dos realizadores ouvidos pelo PÚBLICO lida com a herança do autor de "Aniki-Bobó". Também sobre este ponto, António-Pedro Vasconcelos manifesta-se o mais crítico: "Até ao final dos anos 80, Oliveira era um cineasta extremamente interessante, não apenas do ponto de vista formal, mas como grande crítico da sociedade burguesa em que se formou". E cita a importância da tetralogia d'"Os Amores Frustrados" ("O Passado e o Presente", "Benilde ou a Virgem-Mãe", "Amor de Perdição" e "Francisca"). Depois, o realizador de "Os Imortais" considera que se acentuou a sua faceta "provinciana, desinteressante, académica e conformista - uma insuportável maçadoria". Dizendo que Oliveira beneficiou da "canonização" da crítica nos últimos 20 anos, Vasconcelos acusa o autor de "O Meu Caso" de se ter fechado sobre si próprio: "Ele nunca se interessou por outra coisa que não fosse ele próprio. Esse egoísmo desmedido é a sua força, a vaidade a sua fraqueza", diz.
Em sentido radicalmente oposto, e tal como Fernando Lopes, Grilo assume a dívida e a herança de Oliveira. Mesmo que considere que mais do que um vínculo mestre-discípulos, "há um diálogo entre os cineastas; os realizadores respondem-se uns aos outros", diz o autor de "A Falha".
Da geração mais jovem, Raquel Freire agradece a Oliveira a lição de "perseverança" e "a fidelidade à sua ideia de cinema, única, singular, inimitável". E cita a importância que para si teve a visão de filmes como "Acto da Primavera", "Francisca" e "Vale Abraão". No entanto, integrante, com João Pedro Rodrigues, de uma geração que vem reivindicando o seu próprio tempo e distanciando-se cada vez mais do legado de Oliveira, a realizadora de "Rasganço" acentua: "Mas o cinema dele é dele. Nunca senti que influenciasse o meu processo de criação".
Sobrevalorizando "o facto extraordinário" de Oliveira conter em si a memória do cinema mundial - "ele preserva uma certa ideia de cinema, desde o mudo ("Douro, Faina Fluvial", 1931) até à idade actual das novas tecnologias" -, Fernando Lopes diz: "Há um peso das suas imagens que cai sobre nós!". E esse é, na opinião do autor de "O Delfim", o legado maior da obra de Oliveira para o cinema português. Independentemente de ele surgir ou não visível como "uma herança dinástica" nos filmes das jovens gerações.
As frases
"Manoel de Oliveira tem levado um bocado o cinema português a reboque, ele que nos ensinou a seguir linguagens e identidades próprias" (...). "Filmes como 'Acto da Primavera' e 'Amor de Perdição' instituíram uma espécie de protocolo de liberdade para a nossa cinematografia".
João Mário Grilo
"Até ao final dos anos 80, Oliveira era um cineasta extremamente interessante, não apenas do ponto de vista formal, mas como grande crítico da sociedade burguesa em que se formou" (...). "Depois, acentuou-se a sua faceta provinciana, desinteressante, académica e conformista - uma insuportável maçadoria".
António-Pedro Vasconcelos
1.9.04
Por ZITA SEABRA
Domingo, 29 de Agosto de 2004
ma interrupção voluntária da gravidez, um aborto, é uma das situações mais dramáticas e solitárias pela qual uma mulher pode passar na sua vida.
A decisão de interromper o ciclo normal da vida e da gestação não deixa nunca de constituir um drama indimensionável, um momento de tal desespero e um desespero de tal dimensão capazes de fazer com que alguém não suporte uma gravidez e decida interrompê-la, seja em que condições for.
Perante este drama secular, os países democráticos, assentes num Estado de direito, procuraram aprovar legislação que dissuadisse e evitasse que, mesmo naquelas situações limite, esse caminho seja trilhado. Sobretudo que nestes casos extremos, com que a vida por vezes desafia as pessoas, o trilho não conduza ao vão de escada e à entrega nos meandros de um negócio que tem tanto de sórdido como de velho. O quadro legislativo pretendido pelos estados democráticos procurou apenas interferir no enquadrando legal de uma grave questão e não no terreno da ética e dos valores. A demonstrá-lo está o facto de apenas se terem demarcado as fronteiras, sem chegar nunca a legalizar e banalizar o aborto como um direito. Em todas as legislações que conheço os médicos, por exemplo, têm consagrado o direito à objecção de consciência, coisa que seria absurda se realmente se tratasse de garantir um direito cívico a cidadãs.
Não conheço igualmente nenhum país em que se tenha decidido pura e simplesmente - sem estipular condições - despenalizar o aborto. O que corresponderia em Portugal a retirá-lo por completo do enquadramento jurídico do Código Penal, em lugar de abrir excepções legais nas quais se preveja que a mulher não sofrerá penas de prisão.
Por tudo isto, é profundamente chocante ver este drama, este último recurso, transformado numa bandeira de luta, ou remetido banalmente para direito cívico, para já não falar num execrável acto de agitação e propaganda. Semelhante atitude é, além do mais, demonstrativa de um profundo desrespeito pela condição feminina, e por todas as mulheres e homens que fazem da maternidade e da paternidade um acto livre, responsável e muito, muito desejado. É um desrespeito por todas aquelas mulheres que, apesar das condições, das agruras da vida e das brutalidades que por vezes acontecem, decidem deixar, contra tudo e contra todos, prosseguir a gravidez que não desejaram, mas que lhes aconteceu.
É pois, uma evidência, que o aborto não pode, nem deve, numa sociedade desenvolvida e democrática, ser considerado um direito e ainda menos uma forma de contracepção. Conheço apenas dois países onde este cenário existiu ou existe ainda: a União Soviética, onde o aborto era a única forma de planeamento familiar legal e a China, onde era obrigatório para todas as mulheres e casais que já tivessem um filho. Como escrevi, em 1989, uma das principais reivindicações das mulheres na URSS e nos restantes países socialistas, durante a Perestroika, foi justamente o acesso a métodos de planeamento familiar que acabassem com a brutalidade dos abortos sucessivos. Tive mesmo oportunidade de visitar uma clínica, acompanhada pelo jornalista José Milhazes onde vi o que nunca imaginei poder ver. Felizmente hoje tal já não acontece, existem contraceptivos (de toda a espécie) à venda por todos esses países ex-socialistas.
Na URSS, a inexistência de contraceptivos chegou a gerar situações tão dramáticas que o PCP enviava clandestinamente embalagens de contraceptivos para as suas funcionárias que trabalhavam nos "países do socialismo real". Na China a situação era ainda pior (melhorou muito pouco infelizmente) pois as mulheres eram e são, forçadas pelo Estado a abortar. Para evitar explosões demográficas, o regime comunista desde o tempo de Mao Tse-Tung definiu que, por lei, cada casal podia ter apenas um filho. Se engravidarem segunda vez o Estado obriga-as a praticarem um aborto. Os testemunhos mais dramáticos que li na minha vida foram - agora que podem falar um bocadinho - os de mulheres chinesas relatando a forma como escondem gravidezes, como escondem filhos, de que a lei as obriga a abdicar da forma mais brutal e aviltante que imaginar se possa.
Digam o que disserem os promotores de campanhas de 'agit-prop', para uma mulher, uma interrupção voluntária da gravidez é e será sempre um último recurso, um acto de desespero, uma situação limite, um drama que lhe marca a vida e a inunda de sentimentos de culpa.
A questão do aborto colocou-se, pois, aos países democráticos não como a emergência de um direito mas como uma necessidade premente de procurar impedir que, perante a determinação de uma mulher em interromper uma gravidez que não deseja, não coloque em perigo - dentro de determinadas condições, que não variam muito nas soluções legislativas - a sua saúde e a sua vida e não mergulhe nos antros sórdidos do escabroso negócio do aborto clandestino.
É, porém, evidente que a obrigação do Estado é, antes do mais, garantir condições legais e sociais para que a maternidade e a paternidade não se transformem no pesadelo de como alimentar mais uma boca, ou como deitar mais um filho.
Por outro lado, só com uma enorme cegueira social se pode ver o Portugal de hoje como idêntico à realidade dos anos 1960 ou dos anos 1980, no que respeita ao planeamento familiar. Ouve-se frequentemente falar do aborto num discurso que remonta há 30 ou 40 anos. Porém, os progressos foram imensos e o acesso aos métodos de planeamento familiar não têm qualquer espécie de paralelo.
Nos anos 1980 ir a uma consulta médica de cuidados primários de saúde constituía a excepção e apenas uma elite restrita o fazia. Hoje, felizmente, não é assim. Há ainda franjas de desinformação, idades de risco, e uma grande demissão dos pais na formação dos filhos, mas é tempo de admitir que a imensa maiorias das mulheres portuguesas, operárias ou meninas empregadas dos cabeleireiros, conhecem e sabem muito bem usar o método contraceptivo que consideram adequado e na maioria dos casos sob vigilância médica.
A política de um Estado democrático deve ter como objectivo impedir que alguém recorra ao aborto por absoluto desconhecimento de alternativas, por desinformação, ou por uma tradição rural radicada nos desmanchos que as avós faziam.
Eis, porém, que alguns, na ausência de bandeiras de luta, de reivindicações mobilizadoras tiram da cartola o aborto como se tratasse de um pilar demarcador entre direita e esquerda, gerando dois tipos de reacção.
Alguma direita reage com tanto medo de voltar a parecer reaccionária, marreta, de costas para a História, com declarações mais progressistas que os progressistas e apressa a pôr-se "à la page", não vá o diabo tecê-las outra vez. Gato escaldado... Olhando para o século XX, é fácil perceber, e muitos têm-no escrito, que a direita teve uma importante vitória ideológica ao ver consagrada consensualmente a economia de mercado como a melhor forma de organização das sociedades para garantir a democracia e o bem-estar social e com essa vitória enterrou as ideologias de esquerda que se lhe opunham, nomeadamente o comunismo e mesmo o socialismo democrático, assente na planificação e estatização dos principais meios de produção mas, pelo outro lado, a esquerda vencia a direita em matéria de concepção de modelos de organização social (divórcio, planeamento familiar, divisão dos papéis tradicionais do homem e da mulher, etc) hoje inquestionáveis, não só no terreno pessoal de cada cidadão mas na realidade constitucional e jurídica dos estados democráticos.
Alguma esquerda, na falta de melhores bandeiras (proletariado já quase não há e a realidade laboral nas empresas ou na agricultura é radicalmente diferente da anterior) serve-se do aborto como de uma importante trincheira que resiste. Assistimos ciclicamente a lutas internas, a declarações e promessas de candidatos a secretários-gerais, de dirigentes partidários falando do aborto como se fosse a principal questão para avaliar da fidelidade à esquerda de um dirigente. E aqui está o aborto transformado em potencial direito cívico. Ou até em manobra de diversão como é o caso da vinda do barco holandês. Passa pela cabeça de alguém imaginar que alguma mulher, mais ou menos jovem, com mais ou menos dificuldades económicas, se dirige a um barco que é exibido de forma ostensiva e degradante nas televisões e lá entra para fazer um aborto em alto mar? Evidentemente que não.
Tanto mais que Portugal tem desde 1985 uma lei aprovada que foi, podemos dizê-lo sem medo, referendada há três anos pelos portugueses. Convém recordar que nesse momento se disse sim à legislação existente e não à sua alteração. Em referendo livre e democrático.
Não se pode deixar de questionar: porque vem um barco para Portugal e não para a Argélia, ou para a Arábia Saudita? Ou para vastas zonas do globo onde as mulheres são casadas à força com quem nunca viram, como acontece ainda em muitos países islâmicos? Porque não navegam até ao Irão onde bater na mulher é um direito do seu dono? Uma coisa é certa, encheriam o barco! Mas falta-lhes a coragem... Não se resiste a perguntar ainda que razão as impede de salvar mulheres africanas, condenadas à morte por apedrejamento, acusadas de adultério, e aí sim fazem o que já Cristo fez há 2 mil anos? Houve no entanto quem fizesse uma campanha solidária que salvou a vida de Amina, grávida e condenada por um tribunal a ser apedrejada até morrer.
O drama da interrupção voluntária da gravidez merece ser tratado com mais respeito e com mais seriedade.
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